Quem foi Paulo Freire e que orientações importantes Ele propõe aos As educadores as?

H� exatos cem anos, nascia no Recife (PE) um dos mais influentes pensadores brasileiros: Paulo Reglus Neves Freire. O intelectual pernambucano � um dos autores mais lidos e celebrados da pedagogia mundial.

�Paulo Freire n�o � s� um fil�sofo, um pedagogo: � um pensador que transita por v�rios saberes�, observa Adelino Francisco de Oliveira, doutor em Filosofia e professor do Instituto Federal de S�o Paulo (IFSP).

�A cada leitura, voc� percebe sua densidade e qualidade te�rica, mas tamb�m a generosidade, que � um marcante da personalidade dele.�

Vi�va de Paulo Freire, Ana Maria Ara�jo, conhecida como Nita, afirma que os livros dele s�o cada vez mais procurados.

�Paulo est� sendo mais lido hoje do que nos anos 1990, quando estava vivo. Porque naquela �poca vigorou muito a desconstru��o da utopia, era o neoliberalismo pragm�tico. E Paulo � um autor ut�pico�, analisa.

�Hoje, com o mundo em crise, cheio de �dios e antagonismos, h� a necessidade de um mundo mais ameno, onde �amar seja poss�vel�, como ele dizia, ent�o as pessoas procuram mais a literatura de Paulo.�

Nita escreveu a biografia Paulo Freire � Uma hist�ria de vida, um dos livros vencedores do Pr�mio Jabuti de 2007. Relembre a trajet�ria do patrono da educa��o brasileira e entenda a relev�ncia de sua obra.

Forma��o e amadurecimento
Paulo Freire viveu com a fam�lia no Recife at� os dez anos. O pai, Joaquim Tem�stocles Freire, era capit�o da Pol�cia Militar. A m�e, Edeltrudes Neves Freire, fazia trabalhos dom�sticos, bordava e tocava piano.

Embora fizessem parte da classe m�dia, os Freire chegaram a passar fome em meio � crise do final da d�cada de 1920. Paulo s� conseguiu estudar, porque os irm�os Stela e Tem�stocles ajudaram desde cedo com as despesas da casa.

Em 1931, a fam�lia se mudou para o munic�pio vizinho, Jaboat�o dos Guararapes (PE). Paulo cursou o gin�sio no Col�gio 14 de Julho, no centro do Recife. Depois de perder o pai, aos 13 anos, mudou para o Col�gio Oswaldo Cruz. Em troca da gratuidade na matr�cula, trabalhou como auxiliar de disciplina.

Aos 22, ele ingressou na Faculdade de Direito do Recife (FDR), que hoje faz parte da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Durante e ap�s a gradua��o, Freire foi professor de L�ngua Portuguesa no Oswaldo Cruz. Com o diploma em m�os, tamb�m passou a dar aulas de Filosofia na Escola de Belas Artes da UFPE.

Em 1944, casou-se com a funcion�ria p�blica Elza Maia Costa de Oliveira, que tamb�m se formou em direito e dedicou a vida � pedagogia. Ela foi uma das pioneiras em arte-educa��o no Brasil e faleceu em 1986.

A inquieta��o de Freire com os m�todos de ensino tradicionais se materializou, pela primeira vez, em 1955. Na �poca, ele liderou a funda��o do Instituto Capibaribe, que funciona at� hoje. A ideia era construir uma escola �alternativa�, sem fins lucrativos, para fazer contraponto � educa��o acr�tica e conservadora da �poca. Freire afastou-se da dire��o do Instituto Capibaribe um ano depois, mas logo seria conhecido nacionalmente com experi�ncias ainda mais inovadoras.

Em 1958, ele apresentou as bases te�ricas de seu sistema de alfabetiza��o de adultos no II Congresso Nacional de Educa��o de Adultos, no Rio de Janeiro (RJ). A primeira elabora��o sistem�tica de seu pensamento veio no ano seguinte, ao submeter uma tese de concurso para a cadeira de Filosofia da Educa��o na Escola de Belas-Artes de Pernambuco.


Da teoria � pr�tica

Em 1961, ocupando o cargo de diretor do Departamento de Extens�es Culturais da Universidade do Recife, Freire montou um grupo de educa��o popular que alfabetizou 300 cortadores de cana da regi�o em 45 dias. Na �poca, ele atuava no Movimento de Cultura Popular (MCP), que apostava na alfabetiza��o e na conscientiza��o dos trabalhadores por meio de c�rculos de cultura.

�Paulo Freire acreditava, de verdade, na pr�xis [processo pelo qual uma teoria � executada ou praticada]. N�o era uma quest�o apenas de discurso. Ele se metia nas coisas, queria saber, estava junto, participava�, afirma Lisete Arelaro, doutora em Educa��o, professora da Faculdade de Educa��o da Universidade de S�o Paulo (USP) e amiga de Paulo Freire.

�Isso o distinguia de um intelectual de car�ter mais tradicional, que faz sua palestra, depois vai para casa, deita e dorme. Ele foi um educador militante, at� o final da vida.�

A experi�ncia mais conhecida de Freire naquela �poca ocorreu em 1963, em Angicos (RN). L�, cerca de 300 trabalhadores foram alfabetizados ap�s 40 horas de estudo.

Uma das novidades da sua proposta era a utiliza��o de palavras comuns ao cotidiano dos trabalhadores como ponto de partida para a alfabetiza��o � por exemplo, �tijolo�.

O professor Adelino Francisco de Oliveira conta que ouviu falar em Freire pela primeira vez ao testemunhar essa constru��o na pr�tica, anos depois.

�Eu era menino, morava na entrada do Graja�, na periferia de S�o Paulo, e acompanhava minha irm� M�rcia, que dava aulas de alfabetiza��o para adultos � noite, em uma a��o coordenada pelo Paulo Freire como secret�rio municipal de educa��o�, lembra Oliveira.

Freire exerceu o cargo na gest�o de Luiza Erundina (ent�o no PT, hoje no PSOL) na Prefeitura de S�o Paulo (1989-1992).

�Uma das primeiras coisas que me impactou foi o conceito de palavra geradora. Lembro como se fosse hoje: minha irm� escrevendo na lousa a palavra �trabalho�, e a partir dela dialogando sobre o seu sentido�, relata.

�Eu me recordo de uma senhora falando que trabalho, para ela, significava sofrimento. Ent�o, as pessoas debatiam, contavam suas experi�ncias, e ao mesmo tempo aprendiam a ler e escrever a realidade.�

Proje��o nacional
A experi�ncia de Angicos, que gera frutos at� hoje, repercutiu em todo o pa�s. �Est�vamos vivendo o nacional-desenvolvimentismo, e foram anos de efervesc�ncia, muito criativos e mobilizantes. Havia uma compreens�o de que a educa��o formaria o �homem novo� e mudaria o mundo�, lembra Lisete Arelaro.

�Havia a participa��o crist�, por meio da Teologia da Liberta��o, havia o Partid�o [PCB], que investia na forma��o pol�tica da juventude. Enfim, eram diversos grupos pol�ticos que come�avam a fazer, realmente, propostas de na��o.�

Paulo Freire n�o havia publicado suas obras mais importantes, mas seus conceitos j� eram influentes.
Em S�o Paulo, no in�cio dos anos 1960, o Centro Regional de Pesquisas Educacionais j� produzia slides a partir das propostas de Paulo Freire.

�Em Campinas (SP), a gente passava os slides com caixas de sapato, com as luzinhas dentro�, conta Lisete, que na �poca era uma lideran�a estudantil.

�A UNE [Uni�o Nacional dos Estudantes] estava empenhada na alfabetiza��o de adultos. E a gente sabia que havia um �m�todo� de Paulo Freire, mas os textos dele n�o chegavam. Ent�o, eu era jovenzinha, e n�s faz�amos o que ach�vamos que era Paulo Freire�, explica.

O conceito de palavra geradora foi um dos primeiros a se difundir. Outro questionamento de Freire que se espalhou rapidamente era sobre a disposi��o das cadeiras na sala de aula.

�Paulo Freire dizia que, muito melhor do que olhar o pesco�o dos colegas da frente, � olhar nos olhos dele. Colocar as cadeiras uma atr�s da outra s� desestimula a prestar aten��o�, afirma Lisete.

Os grupos de alfabetiza��o de adultos, coordenados pela juventude, geralmente se formavam em par�quias onde havia padres progressistas. Naquela �poca, a Juventude Agr�ria Cat�lica (JAC) e a Juventude Universit�ria Cat�lica (JUC) tamb�m debatiam marxismo e estavam comprometidas com a transforma��o social.

Adelino Francisco de Oliveira, que tamb�m � mestre em Ci�ncias da Religi�o, diz que a perspectiva crist� est� presente em toda a obra de Paulo Freire.

�Ele bebe da Teologia da Liberta��o, mas tamb�m traz contribui��es definitivas a esse grande pensamento teol�gico, que estava sendo constru�do na Am�rica Latina�, diz.

O pensador brasileiro teve contato, nessa �poca, com a teoria da depend�ncia � que tamb�m dialogava com a Teologia da Liberta��o.

�Esse � um conceito-chave, que parece lateral, mas est� presente na obra de Freire. Ela � uma das bases para a cr�tica da Am�rica Latina como um �quintal� dos EUA�, ressalta.

�A pr�pria Pedagogia do Oprimido traz, de certa maneira, essa leitura. A autonomia, sobre a qual Paulo Freire dedicou muita aten��o, � a ant�tese da depend�ncia�.

A vi�va de Freire conta que ele enxergava diferentes etapas na atua��o da Igreja Cat�lica, e via a Teologia da Liberta��o como um caminho necess�rio.

�Paulo interpreta o comportamento da Igreja Cat�lica como moderna, depois modernizante, e depois como testemunho, que � a igreja que acredita no pobre, no negro, no ind�gena, e trabalha para inclui-lo�, relata Ana Maria Ara�jo.

Embora fosse crist�o, Freire lia a realidade a partir de categorias que foram consagradas na obra de Karl Marx e Friedrich Engels, autores do Manifesto Comunista.

�Paulo Freire entende a din�mica da luta de classes, com base no pensamento de Marx. Ent�o, o processo de tomada de consci�ncia, que ele propunha, e que leva � transforma��o da realidade, tem a ver com consci�ncia de classe�, ressalta Oliveira.


A ruptura

Em 1963, meses ap�s o experimento de Angicos, Darcy Ribeiro, ent�o ministro da Educa��o, recomendou que Paulo Freire concebesse um programa nacional de alfabetiza��o.

Na mesma �poca, foi institu�da no Minist�rio uma Comiss�o de Cultura Popular, da qual Freire foi nomeado presidente. A primeira tarefa era levantar o n�mero de analfabetos de 15 a 45 anos, para ent�o elaborar seu programa. A contagem ultrapassou os 20 milh�es.

O Programa Nacional de Alfabetiza��o foi publicado oficialmente em janeiro de 1964, com metas ousadas. Entre elas, alfabetizar 1,8 milh�o de pessoas, com o �sistema Paulo Freire�, j� no primeiro ano.

Muitos dos sonhos daquela gera��o foram interrompidos com o golpe civil-militar de 1964. O ent�o presidente Jo�o Goulart foi deposto e centenas de trabalhadores e intelectuais passaram a ser tratados como inimigos.
Em 16 de junho, Paulo Freire foi preso e levado para Olinda (PE). Acusado de �subversivo e ignorante�, passou 70 dias detido em um quartel, at� ser liberado. Sem condi��es de realizar seu trabalho, dois meses depois, o educador partiu para o ex�lio.


Sementes pelo mundo

Parte significativa da obra de Freire foi escrita fora do pa�s. O �nico livro dele que circulou no Brasil no fim dos anos 1960 foi Educa��o como Pr�tica da Liberdade, baseado na tese apresentada na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife.

Ap�s uma passagem breve pela Bol�via, o educador brasileiro chegou ao Chile em novembro de 1964 para trabalhar no Instituto de Capacita��o e Pesquisa da Reforma Agr�ria (ICIRA).

No pa�s andino, permaneceu cinco anos e escreveu sua obra mais lida: Pedagogia do Oprimido prop�s uma revis�o da rela��o entre educadores e educandos. O di�logo � visto como �exig�ncia existencial� e deve ser a base para a constitui��o do processo de ensino e aprendizagem.

�Paulo Freire tem uma op��o clara pelos oprimidos. Ele denunciou que o processo de desumaniza��o de homens e mulheres no mundo � fruto de uma ordem social e econ�mica injusta, que leva � aliena��o. E a solu��o que ele apresenta � uma educa��o cr�tica e problematizadora, que conduz � emancipa��o�, ressalta Lisete Arelaro.

O livro questiona a hierarquiza��o das escolas e salas de aula e defende que o estudante seja sujeito do processo de aprendizado. Ou seja, os conte�dos n�o deveriam ser padronizados nem �depositados�, seguindo uma cartilha ou diretriz curricular: todo o processo deve ser constru�do coletivamente, porque as realidades s�o diversas.

A proposta � uma educa��o libertadora, em que o oprimido supere sua condi��o sem pretender assumir o papel de opressor.

A Pedagogia do Oprimido foi escrita e publicada pela primeira vez em 1968, mas s� seria editada no Brasil por volta de 1984.

O impacto fora do pa�s foi t�o grande que, em 1969, Freire tornou-se professor visitante da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. No ano seguinte, mudou-se para a Su��a para exercer a fun��o de consultor educacional do Conselho Mundial de Igrejas (CMI).

Nesse per�odo, entre outras tarefas, assessorou o Minist�rio da Educa��o de pa�ses como Guin�-Bissau e S�o Tom� e Pr�ncipe, que eram col�nias portuguesas at� meados da d�cada de 1970.Doutor em Educa��o e professor do Instituto Federal do Paran� (IFPR), Juliano Peroza conta que Freire foi criticado muitas vezes sobre os resultados dessa experi�ncia no continente africano � em compara��o com os programas de alfabetiza��o no Brasil, por exemplo.

O educador deixava claro que as experi�ncias educativas n�o podem ser transplantadas: devem ser reinventadas de acordo com os problemas de cada contexto.

�Freire assumiu uma posi��o de humildade, radicalmente democr�tica, para aprender com aquela realidade, e ao mesmo tempo criticando certas decis�es tomadas p�s-independ�ncia�, explica Peroza.

�Ele dizia que a reconstru��o do continente deveria ter como prop�sito �reafricanizar a �frica�, ou seja, retomar elementos centrais das culturas daquele continente.�

Uma das discuss�es � �poca era o idioma da alfabetiza��o: portugu�s, que era a l�ngua do colonizador, ou crioulo, falado pela maior parte da popula��o?

�Paulo Freire sustentava que a alfabetiza��o deveria ser feita na l�ngua crioula, s� que ainda n�o havia uma literatura, uma gram�tica consolidada. Era predominantemente oral. E os revolucion�rios que lideravam a independ�ncia precisavam avan�ar no processo de alfabetiza��o, e acabaram optando pelo portugu�s�, explica o professor do IFPR.

Diante dessa decis�o, Freire sugeriu que, paralelamente, se constru�sse uma produ��o cultural na l�ngua crioula, para possibilitar a alfabetiza��o no futuro.

�Freire entendia que a leitura do mundo � anterior � leitura da palavra. N�o d� para impor a leitura de uma palavra que seja estranha a meu mundo. Ent�o, os resultados da experi�ncia da �frica n�o podem ser mensurados da mesma forma que no Brasil�, analisa Peroza.

Antes de voltar ao Brasil, Freire esteve em mais de 30 pa�ses, prestando consultoria educacional e desenvolvendo projetos de educa��o voltados para a alfabetiza��o e para a redu��o das desigualdades.
A experi�ncia de Freire no CMI contribuiu para que sua obra fosse lida e estudada em todo o planeta.

�� impressionante o impacto, do ponto de vista intelectual, que a obra dele tem no mundo. Ela tem uma capilaridade, uma transversalidade, um car�ter interdisciplinar, que expressam a universalidade do seu pensamento�, completa o professor do IFPR.

Em 2016, o projeto Open Syllabus listou os 100 t�tulos mais citados nas ementas de programas de estudos de universidades dos Estados Unidos, Reino Unido, Austr�lia e Nova Zel�ndia. Pedagogia do Oprimido � o �nico livro brasileiro na lista e o segundo do campo da educa��o, com 1.021 cita��es.

De volta ao Brasil
O processo de abertura pol�tica do Brasil, que permitiu que as obras de Freire circulassem no pa�s, tamb�m possibilitou seu retorno, na virada dos anos 1980, com a Lei da Anistia.

O educador se filiou ao rec�m-fundado Partido dos Trabalhadores (PT) e atuou por seis anos como supervisor para o programa do partido para alfabetiza��o de adultos.

Meses ap�s o fim da ditadura, faleceu a primeira esposa de Paulo Freire, Elza. Casados por 42 anos, eles tiveram cinco filhos: Maria Madalena, Maria Christina, Maria de F�tima, Joaquim e Lutgarde.

O educador casou-se novamente em 1988, com Nita. Ela tamb�m � educadora, pernambucana, e conhecia Freire desde a inf�ncia.

Meses depois, ao se tornar Doutor Honoris Causa na Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP), Paulo Freire dedicou o t�tulo �� mem�ria de uma e � vida da outra�.

Um dos anos mais importantes da hist�ria pol�tica do Brasil, 1988 tamb�m teve a promulga��o da Constitui��o Federal e a elei��o da primeira prefeita de S�o Paulo: Luiza Erundina.

Secret�rio de Educa��o
�Muitos colegas e amigos n�o queriam que ele assumisse a Secretaria de Educa��o na gest�o Luiza Erundina. Diziam que ningu�m passa pela administra��o p�blica sem algum v�cio, sem �cheirar mal�. Se ele aceitasse, diziam que, o mito iria virar p�.�

O relato de Lisete Arelaro mostra que Paulo Freire j� era um autor consagrado no final da d�cada de 1980. Hoje professora da Faculdade de Educa��o da USP, ela teve o privil�gio de conviver com o intelectual pernambucano e fazer parte daquela Secretaria ao lado dele.

�Eu j� tinha me encontrado com refer�ncias pol�ticas que tinham sa�do do pa�s, exilados em 1964, e estavam voltando. E confesso que tive uma decep��o pelo fato de essas pessoas serem saudosistas, com as mesmas propostas, como se os �ltimos 15 anos pudessem ser anulados�, lembra.

�A minha surpresa com Paulo Freire foi ver que ele era um homem que estava no s�culo 21. No retorno, n�o pretendia repetir Angicos, por exemplo. Ele estava mais avan�ado.�

Liderar a Secretaria era uma oportunidade de enfrentar na pr�tica um modelo educacional ultrapassado, que Freire havia questionado nas d�cadas anteriores.

�Geralmente, encontramos nas escolas curr�culos acabados, prontos para serem aplicados. Infelizmente, impera um car�ter conteudista, ou o que Freire chamava de educa��o banc�ria, deposit�ria, desconsiderando a realidade concreta em que o professor ir� atuar�, ressalta Juliano Peroza.

�Ele dizia esses modelos n�o passam de um �bal� de conceitos�, pura teoria.� O desafio descrito pelo professor Peroza n�o foi o �nico enfrentado pela gest�o Freire. O secret�rio de Educa��o anterior, Paulo Zingg, era assumidamente anticomunista e havia demitido sumariamente 2,5 mil professores grevistas em 1988. Ao todo, 12 mil foram punidos, de diferentes formas.

A primeira tarefa da nova Secretaria foi tornar sem efeito as demiss�es e anistiar todos os grevistas.

Lisete Arelaro conta que houve boicote da gest�o anterior e de fornecedores. �Era uma pol�tica de terra arrasada. Assumimos sem saber que contas t�nhamos que pagar no dia seguinte. A direita raivosa, evidentemente, queria que a gest�o n�o desse certo�, relata.

�Para a merenda escolar, n�o tinha �leo, feij�o, arroz. N�o tinha papel higi�nico. Encontramos escolas j� inauguradas, com matr�culas, plaquinha e tudo, e algumas tinham s� 20 cent�metros de parede para fora da terra. Outras eram s� um galp�o, sem divis�rias, sem banheiro.�

At� hoje, a gest�o de Erundina e Freire � vista como refer�ncia. Ao final do mandato, a rede municipal tinha 120 mil alunos a mais, e centenas de conselhos de escola, com car�ter deliberativo, em funcionamento. Para democratizar as contrata��es para cargos de baixa escolaridade, a prova se tornou classificat�ria, e n�o mais eliminat�ria.

�Ele defendia que os professores tivessem uma jornada de trabalho que possibilitasse ficar parte em sala de aula, parte com seus pares, para discutir como trabalhar�, acrescenta Lisete.

O Movimento de Alfabetiza��o de Jovens e Adultos (MOVA), criado em S�o Paulo em 1989, foi replicado por centenas de prefeituras do Brasil.

Outra iniciativa lembrada com carinho era a possibilidade de abrir a escola nos finais de semana para refei��es e atividades recreativas. Estudantes e pais assumiam o compromisso de manter a escola limpa, e at� ajudavam na pintura e na manuten��o.

�Ent�o, ele arriscou, e foi muito bem-sucedido�, observa a professora Lisete Arelaro. �Nunca teve medo de assumir posi��es, fazer propostas, ver o que estava acontecendo nas escolas. Era um homem que estava dispon�vel para enfrentar esse novo momento hist�rico que est�vamos vivendo.�

A experi�ncia na Prefeitura de S�o Paulo foi descrita por ele em 1991, no livro A Educa��o na Cidade.

�ltimos anos
O Instituto Paulo Freire, que preserva e difunde at� hoje o legado do pensador pernambucano, foi criado logo ap�s sua experi�ncia como secret�rio. Parte dessa responsabilidade, ap�s a morte do intelectual pernambucano, coube a Nita.

�Eu j� trabalhava com Paulo nos livros, ajudando no que era poss�vel. Evidentemente, n�o escrevia por ele, mas ajudava na parte burocr�tica, no contato com a editora. Eu j� estava muito assenhorada disso. Ent�o, n�o foi uma novidade e n�o me assustou�, lembra a vi�va.

Durante o segundo casamento, em 1992, ele publicou uma de suas obras mais importantes.
�Sugiro Pedagogia da Esperan�a como um livro iluminador para quem quer entrar no pensamento de Freire�, afirma o professor Juliano Peroza.

�Ele escreve de maneira narrativa, fazendo uma leitura dial�gica da Pedagogia do Oprimido, mas tamb�m falando dos dramas da sua pr�pria exist�ncia. Foi um livro que me cativou, me situou historicamente e trouxe reflex�es do ponto de vista existencial � que n�o est� distanciado de uma perspectiva social e coletiva�. Editado em 1996, um ano antes de seu falecimento, Pedagogia da Autonomia � o livro de cabeceira de muitos educadores brasileiros que compartilham da utopia de Freire.

�A rotina do professor iniciante � intensa, exaustiva. Ele precisa se desdobrar em v�rias escolas para sobreviver, minimamente, com dignidade, n�o tem tempo para refletir sobre a pr�tica e desenvolver sua autonomia profissional�, explica Peroza.

�Paulo Freire propunha que cada professor fosse autor da sua pr�pria pr�tica, e a obra elementar dessa proposta � a Pedagogia da Autonomia.�

Doutor Honoris causa por 41 universidades diferentes, Freire faleceu em 2 de maio de 1997, �s 6h53, em S�o Paulo, em decorr�ncia de um infarto do mioc�rdio.

Nita n�o esconde o carinho pelo eterno companheiro, e o sentimento que permanece vivo � uma motiva��o a mais para difundir seu legado.

�Eu e Paulo vivemos tudo que um homem e uma mulher podem viver quando se amam. Vivemos na plenitude, embora ele dissesse que n�o existe plenitude de nada. Mas o m�ximo que � poss�vel viver, como casal, n�s vivemos.�

Dados compilados por ela apontam que 1.461 disserta��es de mestrado e 363 teses de doutorado no Brasil se fundamentaram no pensamento dele entre 1987 e 2011.

Os pesquisadores que estudam seus conceitos v�m das �reas mais diversas: pedagogia, letras, direito, servi�o social, lingu�stica, psicologia, antropologia, comunica��o, artes, enfermagem, medicina, ecologia, nutri��o, engenharia, economia e arquitetura.

Isso n�o significa que os educadores que leram Paulo Freire ser�o capazes de reproduzir os conceitos na pr�tica.

�As estruturas escolares, de maneira geral, n�o s�o democr�ticas, e isso dificulta que a proposta de Paulo Freire seja implementada. N�o se trata de aprender o m�ximo poss�vel de conceitos. � preciso disposi��o para desconstruir os modelos tradicionais de avalia��o, de hierarquia e do pr�prio poder do professor�, pondera Adelino Francisco de Oliveira, professor do Instituto Federal de S�o Paulo (IFSP).

�N�o quer dizer que tudo � permitido na pedagogia de Paulo Freire. No ambiente que ele prop�e, a disciplina � um elemento fundamental, mas a cr�tica e a diversidade tamb�m s�o�.

Alvo da extrema direita
Reconhecido como patrono da educa��o brasileira conforme a Lei 12.612, de 13 de abril de 2012, Freire nunca foi unanimidade. N�o � toa, houve v�rias tentativas, por meio do Poder Legislativo, de revogar esse t�tulo.

O �dio ao educador pernambucano � anterior � ascens�o do bolsonarismo no Brasil, e mesmo � ditadura civil-militar. Um m�s ap�s o experimento de Angicos, por exemplo, o munic�pio registrou sua primeira greve de trabalhadores, e latifundi�rios locais atribu�am aquele acontecimento a Freire � que chegou a ser chamado de �praga comunista�.

As ofensas a seu legado se tornaram mais frequentes nos �ltimos dez anos. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e do movimento �Escola sem partido� costumam associ�-lo � �doutrina��o� de estudantes nas escolas e universidades.

O professor Adelino Francisco de Oliveira diz que se arrepia ao ouvir �cr�ticas� como essa
�Freire entende o processo educacional como tomada de consci�ncia do mundo: a educa��o precisa trazer a realidade � tona, tirar os v�us que a cobrem. Por isso, n�o � uma educa��o ideol�gica nem doutrinadora�, explica.

�Mas o conhecimento da realidade n�o � apenas uma elucubra��o te�rica. Ele conduz a uma tomada de posi��o contra as injusti�as.�

Para Juliano Peroza, os ataques ao intelectual pernambucano refletem justamente a frustra��o daqueles que desejam controlar o que acontece nas salas de aula.

�Quem chama Paulo Freire de doutrinador geralmente v� nele uma pedra no sapato de sua pr�pria sanha doutrinadora�, analisa.

�E � dif�cil para um reacion�rio engolir que um autor declaradamente socialista ocupe tamanha evid�ncia no cen�rio educacional. Da�, vem essa tentativa insistente de atac�-lo. N�o h� debate de ideias. As �cr�ticas� que lhe fazem s�o, em sua maioria, ataques de cunho meramente moralista, com enorme fragilidade.�

Lisete Arelaro enfatiza que o pensamento de Freire n�o interessa �s grandes corpora��es do setor educacional.

�O processo de uniformiza��o, que Paulo Freire sempre foi contra, est� se instalando hoje no Brasil. Por isso, a rea��o a ele continua mais viva do que nunca�, diz.

�Hoje as grandes empresas vendem apostilas, lucram, e est�o dominando inclusive o Plano Nacional do Livro Did�tico. E quanto mais se uniformizar, mais lucro eles ter�o.�

Paulo Freire costumava dizer que esperan�a deve ser entendida como verbo: �esperan�ar�. O termo � dificilmente encontrado em sua bibliografia, mas foi consagrado pelos relatos de amigos e colegas.
Em tempos de ascens�o do autoritarismo e da volta da fome, esse verbo resume a atualidade de seu pensamento.

�[Esperan�ar] � uma refer�ncia ao que ele chamava de sonho poss�vel, ou in�dito vi�vel. Ele dizia que �s vezes s� n�o enxergamos um futuro diferente porque a ideologia que prevalece no momento obscurece nossa capacidade de vislumbrar algo novo�, enfatiza Peroza.

�Por isso, ele critica o fatalismo embutido na ideia neoliberal, que concebe a hist�ria de maneira est�tica e im�vel, como se n�o houvesse outro mundo poss�vel.�

Para Adelino Francisco de Oliveira, � justamente o potencial revolucion�rio da obra de Freire que faz dele perigoso aos olhos do atual governo.

Aos que atacam seu legado seu conhece-lo, o professor do IFSP faz um convite oportuno. �Todo sistema totalit�rio tem como base cercear a capacidade de as pessoas pensarem de maneira cr�tica�, afirma.

�Ent�o, de um lado voc� tem uma c�pula ideol�gica que tem total consci�ncia do poder e da for�a de Paulo Freire. Mas a massa, a m�dia das pessoas que se op�em � obra dele, desconhecem totalmente. Uma leitura da obra dele certamente iria ilumin�-las�, finaliza.

* Colaborou Jos� Eduardo Bernardes.
Edi��o: Anelize Moreira

Quem foi Paulo Freire e qual a sua importância para a educação brasileira?

Paulo Freire (1921-1997) foi o mais célebre educador brasileiro, com atuação e reconhecimento internacionais. Conhecido principalmente pelo método de alfabetização de adultos que leva seu nome, ele desenvolveu um pensamento pedagógico assumidamente político.

Como Paulo Freire propõe que seja a relação educador educando?

Na educação problematizadora, o educador é o que educa e é educado, em diálogo, com o educando que, ao ser educado, também educa (pois, ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo).

Qual foi a maior contribuição de Paulo Freire para a educação?

Crítica à educação bancária Uma das principais contribuições de Paulo Freire é a sua crítica à educação tradicional, conceituada na obra “Pedagogia do Oprimido” como educação bancária.

O que Paulo Freire defende na educação?

Ele defende uma educação que incentive a criticidade do aluno, indo além do português e da matemática. Suas ideias também possuem ligações com o pensamento marxista e críticas ao capitalismo.

Toplist

Última postagem

Tag