Como funciona a imunidade de jurisdição estatal no âmbito direito internacional?

Gustavo Filipe Barbosa Garcia é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário, advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

Este trabalho condensa informações doutrinárias a respeito do instituto da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, realizando um levantamento histórico, reafirmando conceitos e teorioas, evidenciando características próprias, sobretudo investigando o seu poder de alcance, bem como suas limitações a partir da noção de Estado soberano em relação aos seus atos de império e gestão, trazendo à baila um estudo jurisprudencial pátrio.

 

1 INTRODUÇÃO

O Direito Internacional é o ramo da ciência jurídica composto por normas regulamentadoras das relações jurídicas no cenário global. Nesse panorama planetário, os sujeitos de direito externo, ou internacional, são principalmente os Estados nações – ainda que de maneira mais ampla as Organizações Internacionais sejam alcanças por essa qualidade.

Na seara do Direito Internacional Público, os interesses dos atores internacionais são velados ora por regras expressas, ora por costumes capazes dizer o direito. A partir dessa condição, a superação de conflitos entre Estados estrangeiros está diretamente sujeita à arbitragem internacional de organismos supraestatais, em virtude do fenômeno da soberania dos países. Corrobora nesse sentido a ausência de uma legislação internacional planificada, capaz ser aplicada aos mais diversos sujeitos de direito externo, fato gerador de inovações e da diversidade de decisões. Ganha relevo então a questão da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro.

Assim a imunidade jurisdicional desponta como um atributo do poder estatal, derivado da soberania, no sentido da sua preservação perante a jurisdição de outras nações. Portanto, é através do Direito Internacional que se traçam regras de cunho costumeiro, que objetivam regular, dar caráter legal às relações jurídicas entre os indivíduos de direito externo igualmente soberanos, visto que o Direito só pode ser dito quando há desnível de atribuições.

Entretanto, o conceito de soberania nacional, antes intangível, modificou-se, e ganhou novos contornos, pois o Estado contemporâneo, além da administração da coisa pública, ingressou na esfera privada do direito através da sua presença nos setores econômicos, chamando para si responsabilidades antes exclusiva dos particulares (ALVES, 2006).

Os debates doutrinários em torno da imunidade jurisdicional e do seu caráter absoluto não são recentes e não tem regras sistematizadas e unificadas no plano internacional. Sendo a soberania estatal inviolável, há que se falar em relativização da imunidade de jurisdição do estado estrangeiro?

Com isso, e em virtude nas novas relações multinacionais, coloca-se um “ponto de interrogação” sobre o que é a imunidade jurisdicional, sob o seu alcance, assim como sob o comportamento tribunais e a sua contribuição jurisprudencial dos para a construção teórica do tema, como será exposto no decorrer desse trabalho.

A redação desse artigo tem por escopo condensar entendimentos doutrinários sobre a imunidade de jurisdição, trazendo à tona o atual posicionamento do Poder Judiciário brasileiro através da analise casos, votos e decisões, escolhidos junto ao acervo virtual do Supremo Tribunal Federal.

Ademais, é importante esclarecer que esta redação não contempla uma analise das imunidades estendidas aos diplomatas e cônsules, visto que eles já se encontram submetidos a legislação internacional, resultado das Convenções de Viena sobre relações Diplomáticas e Consulares.

Em síntese, sem que haja critérios e fundamentações de origem internacional, é inviável aos Poderes Legislativos nacionais promulgar leis que estabeleçam a sobreposição de sua jurisdição em relação à de outros Estados, impossibilitando a execução judicial. Apreciar essas regras e a sua flexibilização é o que se pretende a partir daqui.

 

2 ASPECTOS HISTÓRICOS

O instituto da imunidade jurisdicional, na forma que conhecemos hoje, é resultado do costume internacional par in parem non habet judicium, pelo qual entre iguais não há poder de dizer o direito, base postulatória sob a qual foram erguidas as diretrizes a respeito da imunidade de jurisdição.

Contudo, um breve levantamento histórico revela que antes do estabelecimento da imunidade de jurisdição, nesses termos, os povos já exerciam entre si, nas suas relações, esta velha prática costumeira.

Em sua origem, fase embrionária da imunidade de jurisdição, reporta-se à Antiguidade Clássica, período cujas tribos helênicas já exerciam diplomacia entre si através da figura de porta-vozes. Acreditava-se que esses enviados, encarregados de negociar dentro do território de outros povos, em nome de um soberano, eram revestidos da imunidade conferida pelas divindades do Panteão, portanto, estavam isentos da submissão à soberania estrangeira.

Realizando um salto histórico para a Idade Média, a ideia de imunidade de jurisdição manteve-se sob a perspectiva religiosa. Contudo, com o avanço do Cristianismo, a Igreja e seus membros detinham papel importante na construção moral dos povos que se firmaram no continente Europeu. Portanto, ao longo de séculos a Igreja permaneceu isenta da interferência de poderes seculares. Dessa forma, por gozar de imunidade absoluta, durante o período da Inquisição, a Igreja organizou Tribunais próprios – tribunal do Santo Ofício – para agir e julgar de acordo com a soberania das leis divinas a ela atribuídas.

Já na Idade Moderna a imunidade jurisdicional adquire novos contornos, sendo estendida a outros setores do Estado. Nesse período o conceito de soberania é reforçado pelo advento da organização dos Estados Nacionais na Europa, bem como o estabelecimento e apogeu do Antigo Regime, principalmente caracterizado pelas monarquias de origem divina. A figura do rei se confundia com a do Estado nação, assim, a soberania nacional se consubstanciou na soberania do monarca – “L'État c'est moi”. Decorrente dessa política de infalibilidade da realeza, não somente o Estado, mas também o rei, a corte e seus funcionários não poderiam ser alvo de submissão de jurisdição estrangeira ou ordinária.

Em virtude dos movimentos revolucionários burgueses regados pelas ideias iluministas, que culminaram na derrocada das monarquias absolutistas e na ascensão classe social burguesa, no século XVIII, o cenário político se modificou refletindo diretamente no novo período normativo que se firmava. O movimento constitucionalista adquiriu força da mesma forma que as bases democráticas.

A separação identitária entre o Estado e seus gestores foi efetivada, bem como realizada a distinção das suas funções. Nesse momento, o conceito pós-moderno de imunidade de jurisdição firmou-se no direito à liberdade, oriundo da soberania do Estado de Direito, não mais do governante. Contudo, no tocante às imunidades internacionais, elas se mantiveram invioláveis afinal, cada Estado permaneceu autônomo em relação aos demais quanto aos seus atos de império.

A discussão sobre o caráter absoluto da imunidade de jurisdição se estendeu pelo século XX. O mundo se transformou significativamente desde o século passado, as relações internacionais públicas se dinamizaram e trouxeram novos problemas de direitos humanos anteriormente não enfrentados, de modo que, os seguintes embates acadêmicos passaram a questionar o alcance das imunidades internacionais, como também cogitaram a flexibilização do conceito de soberania dos países. O papel de revisão do costume internacional absoluto da imunidade jurisdicional coube aos Tribunais Excelsos dos países onde surgiam demandas judiciais envolvendo particulares em face de estados estrangeiros.

No Brasil, não ocorreu de maneira diferente, com destaque para a demanda “Geny de Oliveira versus Alemanha”, julgado em 1989. Trata-se de reclamação trabalhista ajuizada pela senhora Geny de Oliveira em face da Representação Comercial da República Democrática Alemã (RDA), no ano de 1976, na cidade de São Paulo, com resultado judicial inovador para ordenamento pátrio, seguindo a tendência internacional de proteção a diretos humanos – discussões iniciadas formalmente na Convenção Europeia sobre Imunidade de Estado, em 1963.

 

3 DO ESTADO E SUA SOBERANIA

A imunidade de jurisdição é um fenômeno jurídico resultante das categorias Estado e soberania. Como numa “boneca russa”, a concepção da imunidade jurisdicional do estado estrangeiro decorre do desdobramento dessas categorias.

O Estado é uma entidade complexa. Estabelecer um conceito para tal que satisfaça todas as correntes doutrinárias é uma tarefa inviável, pois ele pode ser abordado a partir de diversas de perspectivas científicas. Contudo, de antemão, faz-se mister esclarecer que, a projeção de Estado entendido como sociedade organizada politicamente pertence, semanticamente, ao campo do senso comum. Trata-se de uma convenção que semeia a noção de cidadania – ou identidade nacional – entre os sujeitos inseridos em um determinado território. E embora sejam vocábulos usados como sinônimos, Nação não é Estado. Ademais, esta afirmação é voltada apenas para a construção da personificação estatal em seu caráter interno.

Em outro sentido, no qual se alinha o tema do trabalho, admitem-se duas correntes de conceituação do ente Estado relacionadas aos seus elementos. A primeira orientação está ligada à noção Força, propriamente política, já a segunda, orientada pela noção de Ordem, de caráter jurídico. Todavia, um seguimento não implica negação do outro.

De acordo com a vertente doutrinária vinculada à noção de força, o Estado é conceituado como esta força que se estabelece em relação si próprio e que, de acordo com seus fins, busca a adequação jurídica. Ou seja, o Estado enquanto Força, é materialmente irresistível contornada pelas fronteiras do Direito, como sugeriu Deguit, autor clássico da Ciência Política. ainda que eminentemente político, este conceito não negligencia o caráter jurídico do ente.

HELLER não fica distante, dando ao Estado o conceito de unidade de dominação, completando sua conceituação dizendo que ela é independente no exterior e no interior, atua de modo contínuo com meios de poder próprio e é claramente delimitada no pessoal e no territorial. Todos esses conceitos, na verdade, mantêm a tônica da ideia de força, ainda que associada a outros elementos e disciplinada parcialmente pelo direito. (DALLARI, 2011).

Quanto ao seguimento que disciplina o conceito de Estado enquanto ordem é válido admiti-lo como a expressão de um ordenamento jurídico soberano, que tem entre as suas finalidades regular o Direito de um determinado território, ou seja, alcançar e garantir a virtude do bem comum. Infere-se que esta vertente não exclui da sua cadeia teórica a participação da ideia de força na formação do Estado, dando a ela uma posição coadjuvante, como uma das finalidades do Estado.

Tendo em vista que existem outros elementos materiais que combinados moldam o Estado, os teóricos do Estado-ordem dão destaque para o elemento jurídico, pois os outros podem existir em outras formas de organização independentes do conceito de Estado. Por isso, todos estes elementos somente são recepcionados como componentes do Estado com a sua consequente integração no bojo da ordem normativa, inclusive a força, que se integraliza como poder estatal.

É que o afirma Jellinek, ao conceituar o Estado como uma composição territorial capacitada com poder de mando originário. De acordo com esse entendimento, a base do conceito é a categoria composição, que é uma ordenação jurídica de indivíduos integrados sobre um território.

Nos termos do professor Paulo Bonavides, em sua obra Ciência Política, o Estado pode ser expresso da seguinte maneira:

“O Estado é a generalização da sujeição do poder ao direito: por uma certa despersonalização”. Desenvolvendo as ideias de Burdeau, intenta então demonstrar que o Estado só existirá onde for concebido como um poder independente da pessoa dos governantes. (BONAVIDES. 2011).

Assim, o Estado é compreendido como um ente abstrato, contudo dotado de personalidade própria, tanto interna quanto externamente, pois ele é soberano originalmente a partir do estabelecimento da ordem que conjuga seus demais poderes, permitindo-o agir em torno dos seus próprios fins coletivos.

Em face de todas as razões até aqui expostas, e tendo em conta a possibilidade e a conveniência de se acentuar o componente jurídico do Estado, sem perder de vista a presença necessária dos fatores não-jurídicos, parece-nos que se poderá conceituar o Estado como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território. Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que compõem o Estado, e só esses elementos. A noção de poder está implícita na de soberania, que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do Estado é afirmada na referência expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo povo e, finalmente, territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do Estado, está presente na menção a determinado território. (DALLARI. 2011).

Nesses termos, a imunidade de jurisdição encontra-se firmada a partir do conceito propriamente jurídico de Estado, pois, de acordo com ele, a soberania da qual decorrem as imunidades está originalmente mesclada na noção de poder, sendo aquela uma manifestação da ordem jurídica.

A soberania tem seu conceito afirmado desde o XVI, desde então sendo teoricamente definido, embora somente durante as revoluções burguesas da Europa, que a soberania se desvincula do monarca, mudando sua trajetória no sentido da ideia de soberania popular, rumo à concepção de soberania nacional, ou seja, admitindo-a como expressão de poder de uma ordem. Mas, é no século XIX que a soberania se consolida como expressão de poder, principalmente porque era oportuno às grandes potencias mundiais materializarem fundamentos que as protegessem dos efeitos negativos dos seus atos praticados em relação a outras nações. Durante o século XX, com o aperfeiçoamento conceitual da teoria da personalização do Estado, as distinções básicas entre atos de soberania e demais práticas estatais foram traçadas. “O conceito de soberania é uma das bases da idéia de Estado Moderno, tendo sido de excepcional importância para que este se definisse, exercendo grande influência prática nos últimos séculos, sendo ainda uma característica fundamental do Estado”. (DALLARI. 2011).

Quando ao conceito de soberania, há uma gama de entendimentos. Existem autores definem soberania como um poder do Estado, já outros a sustentam como efeito do poder do Estado, entre outros entendimentos, mas todos convergem no sentido de admitir que a soberania é fundamental para a existência e manutenção do Estado.

Ainda sobre o conceito de soberania, ele apresenta dois momentos distintos, porém complementares: a soberania interna e a externa.

A soberania interna significa o imperium que o Estado tem sobre o território e a população, bem como a superioridade do poder político frente aos demais poderes sociais, que lhe ficam sujeitos, de forma mediata ou imediata. A soberania externa é a manifestação independente do poder do Estado perante outros Estados.” (BONAVIDES, 2011)

Portanto, em se tratando de matéria internacional, o conceito de soberania ainda é espinhoso, partindo do pressuposto de que todos os atos dos Estados são passíveis de enquadramento jurídico, tem-se como soberano o poder que decide qual a regra jurídica aplicável em cada caso, podendo, inclusive, negar ajuridicidade da norma. Segundo essa concepção não há Estados mais fortes ou mais fracos, uma vez que para todos a noção de direito é a mesma. A grande vantagem dessa conceituação jurídica é que mesmo os atos praticados pelos Estados mais fortes podem ser qualificados como antijurídicos, permitindo e favorecendo a reação de todos os demais Estados. (DALLARI. 2011).

Visto a caracterização do Estado com a presença seus atributos formadores, em especial a soberania, que lhe confere um status de sujeito externo, projetado no cenário internacional. Nesse ambiente é que se fomenta o instituto da imunidade de jurisdição dos Estados, refletindo a inviabilidade de uma nação ser submetida à jurisdição de outro igualmente soberano.

 

4 DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO

Já cediço, a imunidade de jurisdição dos Estados é um instituto foi sendo aprimorado concomitantemente com a consolidação da própria noção de soberania estatal. Porém, quando se fala em imunidade jurisdicional do estado estrangeiro, não infere a existência de uma jurisdição internacional, mas sim, a coexistência de diversas jurisdições nacionais.

Para compreender a sua aplicação, esse momento se dedica ao aspecto processual da imunidade de jurisdição.

Desde já, é necessário estebelecer um conceito para jurisdição, que pode ser admitida como o poder estatal de “dizer o direito” dentro do limite territorial sob o qual incide a soberania do Estado. Para, a processualística clássica, a jurisdição é a prerrogativa que o Estado possui para apreciar e julgar as demandas que lhes são apresentadas.

... resta agora, a propósito, dizer que a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decições. Como função expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete. (GRINOVER. 2013).

Tendo como características próprias ser una e indivisível, a jurisdição, mesmo internamente, é submetida a limitações de competência (autolimitação).

No aspecto Internacional, as limitações de jurisdição têm outro perfil, visto que entre os Estados de Direito a noção de ordem é mesma, ou seja, não há um estado soberano que possa ter mais alcance de jurisdição em relação ao imperium de outro, pois “nenhum Estado soberano pode ser submetido contra sua vontade à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado” (RESEK, 2011).

É justamente esse parâmetro de alcance que interessa ao Direito Internacional, investigar limites de aplicação do direito nacional de um país em relação aos atos de outro.

Determinar uma primeira limitação à jurisdição dos estados estrangeiros requer uma maior fundamentação jurídica, visto inexistência de uma legislação positiva capaz de determinar diligências e competências.

Essa tarefa restou subsidiada pela doutrina, que passou a investigar níveis de flexibilização da soberania, estabelecendo critérios, então inovadores, que admitem a imunidade jurisdição ora como absoluta, ora como relativa.

Esse entendimento doutrinário parte do pressuposto de que o Estado de Direito, originalmente soberano, é dotado de personalidade jurídica própria, sustentando que ele pode assumir posturas tanto do direito público, próprias dos seus poderes, como também do direito privado, como se um particular fosse. Nessa perspectiva instala-se a classificação das práticas estatais em atos de império e dos atos de gestão, pregoados pela Doutrina dos atos do Estado.

Os atos império são exclusivos do Estado soberano. O Estado pratica atos que não conferem obediência facultativa aos particulares, portanto são impostos coercitivamente, ou seja, são dotados de supremacia. Os atos de império objetivam a realização de finalidades primárias do Estado pelo Estado. Para o costume internacional, esses atos gozam absolutamente da imunidade de jurisdição.

Já os atos de gestão, são aqueles praticados pelo Estado quando comparado a um particular, ou seja, são atos típicos de administração, assemelhando-se aos atos praticados pelas pessoas privadas. Diferentemente dos atos de império, os atos de gestão não implicam na utilização da supremacia do Estado. De acordo com a convicção internacional, os atos de gestão conduzem à relativização da imunidade de jurisdição.

Esse modelo de interpretação tem sido acolhido por diversos tribunais, de diversos países, quando são acionados para solucionar conflitos entre o interesse privado e um Estado estrangeiro.

 

5 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRO

Da mesma forma em outros estados, o conjunto normativo pátrio não abriga com unanimidade casos relativos à imunidade de jurisdição absoluta do Estado estrangeiro. Inúmeras são as litigâncias submetidas a analise dos órgãos do Judiciário nas quais figuram como partes da ação outros Estados soberanos. Nos desfechos de tais processos com suas respectivas sentenças, são arguidos variados fundamentos que trazem à tônica da questão uma gama de fontes admissíveis em direito para orientá-las. Contudo, ainda é possível observar decisões desalinhadas, muitas delas divergentes, inclusive na mesma corte, a respeito do mesmo tema, nas mais diversas áreas do Direito. Em outro sentido, na Justiça do Trabalho a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro goza de uniformidade nas decisões prolatadas. No direito brasileiro, a imunidade jurisdicional em matéria trabalhista encontra-se pacificada, sendo afastada a imunidade de jurisdição absoluta do Estado estrangeiro.

Desde o julgamento procedente da ação interposta pela Srª. Geny de Oliveira interposta em face da Representação Comercial da República Democrática Alemã (RDA), em 1976, pleiteando a anotação na carteira profissional de seu falecido marido dos dados relativos ao contrato de trabalho entre o de cujus e a mencionada representação, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal Federal têm decido de maneira colinear as causas de natureza trabalhista em que a parte reclamada é outro Estado soberano. Portanto, nesses casos, o caráter absoluto da imunidade jurisdicional é afastado, podendo o caso ser apreciado de acordo com as normas nacionais.  Ainda que os efeitos vinculantes das suas súmulas não se produzam, as sentenças após o precedente julgado são todas no mesmo sentido, recomendada para casos futuros, criando-se uma nova regra.

Nesse âmbito, em sede de leanding case, relata o Ministro aposentado do STF, Francisco Resek em voto: “Aquela antiga e solida regre costumeira de direito internacional público, a que repetidamente este Plenário se referiu, deixou de existir na década de setenta. Em 1972 celebrou-se uma convenção europeia sobre imunidade do Estado à jurisdição domestica dos demais Estados (European Convetion on State Imunity, Basiléia, 16 de maio de 1972). Nessa convenção, que é casuística como diversos textos de igual origem, talvez o leitor não possa detectar o substrato filosófico da fronteira que se terá estabelecido entre aquilo que é alcançado pela imunidade e aquilo que não o é mais; entre o que os Estados pactuantes entenderam estar no domínio dos atos de império e no dos atos de mera gestão.” (STF, AC 9.696-3 – SP, Rel. Min. Sydney Sanches, LTr55-01/45).

Nesses termos, o orientando seu voto a partir da convenção europeia sobre imunidade jurisdicional doméstica dos países soberanos, o ministro Resek identifica a aplicação da teoria dos atos de Estado na determinação do alcance da imunidade de jurisdição, corroborando para o alinhamento jurisprudencial brasileiro com o movimento de relativização do instituto e seus princípios. Assim, os atos derivados de relações laborais entre particulares e entidades de direito externo, tutelando o negócio jurídico da relação, foram dissociados de outros atos tipicamente praticados pelo governo enquanto império. Completa o ministro em seu voto: “Bem antes da celebração desse tratado já fermentava em bom numero de países, a tese de que a imunidade não se deveria mais admitir como absoluta (grifos do autor). A imunidade deveria comportar temperamentos. Naquela época o Supremo, embora ciente dessa realidade, preservava sua postura fiel à tradição da imunidade absoluta.” (STF, AC 9.696-3 – SP, Rel. Min. Sydney Sanches, LTr55-01/45).

Para demonstrar a aplicação desse esse entendimento enquanto jurisprudência posterior, citaremos o Recurso Ordinário 33/ STJ, RJ 2003/0235440-6, cuja ministra relatora é Nancy Andrighi: A imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro não alcança litígios de ordem trabalhista decorrentes de relação laboral prestada em território nacional e tendo por reclamante cidadão brasileiro aqui domiciliado. - O julgamento da ação trabalhista ajuizada antes do advento da Constituição Federal de 1988 deve obedecer ao disposto no art. 27, § 10 do A.D.C.T. c/c art. 125, II, da E.C. 1/69. A competência da Justiça do Trabalho só se confirma com o advento da atual Constituição Federal, precisamente em seu art. 114. - Precedentes do STJ e STF. Recurso ordinário parcialmente provido. (STJ - RO: 33 RJ 2003/0235440-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 02/06/2005, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 20.06.2005 p. 262RST vol. 196 p. 147)

No mesmo sentido, também arguindo a distinção entre atos de império dos atos de pura gestão, expressa a decisão em Recurso Ordinário do TRT da 10ª região, 2ª turma, cuja relatora é Desembargadora Maria Piedade Bueno Teixeira: A imunidade absoluta do Estado Estrangeiro restou flexibilizada pelo Direito Internacional para submetê- lo à jurisdição doméstica nos atos de pura gestão, eis que nesses casos se equipara ao particular. Caso contrário, estar-se-ia referendando o enriquecimento sem causa do Estado alienígena. Não há mais de se falar em imunidade de jurisdição de Estado Estrangeiro nos casos em que este atue na esfera privada, afastada, portanto, do plano das relações diplomáticas e consulares (TRT-10 - RO: 186200501810003 DF 00186-2005-018-10-00-3, Relator: Desembargadora Maria Piedade Bueno Teixeira, Data de Julgamento: 15/02/2006, 2ª Turma, Data de Publicação: 24/03/2006).

Cediço que os casos de natureza trabalhistas não são os únicos a serem submetidos à apreciação dos tribunais. Notadamente, diversas decisões são prolatadas em diversos segmentos do Direito. Contudo, a mesma uniformidade da seara trabalhista não se estende à outras áreas do Direito. Isto é, em linhas gerais não se verifica uma consolidação de entendimentos, embora seja um fenômeno constante nas decisões que tratam das imunidades do Estado estrangeiro fundamentos no sentido de se afastá-las.

Na esfera Civil, o Recurso Ordinário 26 RJ 2003/0049144-3 do STJ, ao tratar de responsabilidade civil, versa: A imunidade de jurisdição só abarca os atos praticados de jure imperii, daí excluídos, portanto, aqueles praticados de jure gestionis, vez que equiparados estes aos atos corriqueiros das vidas civil e comercial comuns. (Precedentes: RO 72/RJ, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, DJe de 08/09/2009; e RO 6/RJ, Rel. Min. GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, DJU de 10/05/1999). Hodiernamente não se há de falar mais em imunidade absoluta de jurisdição, vez que se admite seja a mesma excepcionada nas hipóteses em que o objeto litigioso tenha como fundo relações de natureza meramente trabalhista, comercial ou civil, como ocorre na hipótese dos autos, onde o que pretende o autor da demanda é obter reparação civil pelo suposto descumprimento de contrato verbal celebrado (STJ - RO: 26 RJ 2003/0049144-3, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Data de Julgamento: 20/05/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/06/2010).

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada a construção histórica, doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro, pode-se extrair que, a carência de normas positivas de alcance internacional ainda gera entendimentos diversos a respeito da imunidade jurisdicional. Embora, após as Convenções de Viena a produção normativa dela advinda tenha esclarecido pontos importantes a respeito do principio da imunidade jurisdição do Estado estrangeiro, o tema não se encontra completamente regulamentado, guiado principalmente pelo costume internacional com base no direito das gentes, fato que se reflete na fundamentação das decisões, tarefa que tenta mitigar desencontros doutrinários no próprio caso concreto.

Outro aspecto enfrentado na caracterização da imunidade jurisdicional continua sendo a distinção entre os atos e de império e os atos e mera gestão para se adotar uma postura absoluta ou relativa em relação à aplicação do instituto.

Mas, a doutrina recentemente tem prestigiado o entendimento assentado no afastamento do caráter absoluto da imunidade de jurisdição. As questões atinentes à infração da soberania estatal continuam sendo remodeladas, de modo que atos gravosos de outros países soberanos em relação aos súditos nacionais não deixem de receber tutela judicial.

 

REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

ALVES, Laerte Meyer de Castro. Imunidades de jurisdição dos Estados estrangeiros em matéria trabalhista no Brasil. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/8115/imunidades-de-jurisdicao-dos-estados-estrangeiros-em-materia-trabalhista-no-brasil>. Acesso em: 26 abr. 2014.

CARNEIRO, Maria Francisca. Pesquisa jurídica: metodologia da aprendizagem: aspectos, questões e aproximações. 4. ed., rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2007.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 29. ed. São Paulo: Malheiros. 2013.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 19. ed. São Paulo: Malheiros. 2011.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 30. ed. São Paulo, Saraiva. 2011.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes. 2005.

RESEK, Francisco. Direito Internacional: Curso Elementar. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

VERDROSS, Alfred. O fundamento do direito internacional. Disponivel em: < http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/rdi/article/download/2685/pdf>. Acesso em 22 de abr. 2014.

O que é imunidade de jurisdição no âmbito do direito internacional?

Imunidade internacional de jurisdição seria a isenção, para certas pessoas, da jurisdição civil, penal, administrativa, por força de normas jurídicas internacionais, originalmente costumeiras, praxe, doutrina, jurisprudência, ultimamente convencionais, constantes de tratados e convenções.

O que se entende por imunidade de jurisdição estatal?

Conceitualmente, pode-se afirmar que a imunidade de jurisdição é uma restrição ao exercício do poder jurisdicional pelo Estado que o impede de exercer tal poder em razão do atributo imunizante conferido ao outro Estado.

O que é imunidade de Estado?

Resumo. A imunidade de jurisdição consiste no impedimento para que um Estado exerça sua jurisdição sobre pessoa jurídica de Direito Internacional Público em seus próprios tribunais. Contudo, essa proteção, que já foi absoluta, relativizou-se.

Qual o posicionamento do Brasil face a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros quanto aos seus atos em relação ao nosso ordenamento jurídico?

Os Estados estrangeiros não dispõem de imunidade de jurisdição, perante o poder judiciário brasileiro, nas causas de natureza trabalhista, pois essa prerrogativa de direito internacional público tem caráter meramente relativo.