O objetivo desse artigo � contribuir para a compreens�o da necess�ria participa��o da sociedade no poder, mostrando que a aproxima��o entre representantes e representados � o resultado de uma combina��o de dois fatores: a crise da democracia representativa e a inaplicabilidade da democracia direta. Ser�o apresentadas a seguir algumas defini��es conceituais.
Quando pensamos na origem da democracia nos reportamos � experi�ncia vivida na Gr�cia cl�ssica. Atenas � considerada por muitos o ber�o da democracia. � a partir desse momento que passamos a entender a gest�o dos neg�cios p�blicos como o resultado do desejo de uma maioria. N�o existia, nesse modelo, a figura dos representantes e, conseq�entemente, elei��es. O complexo governo de Atenas pode ser resumido da seguinte maneira: uma assembl�ia a que todos aqueles que eram considerados cidad�os podiam participar, e l� eram tomadas as principais decis�es p�blicas. Atualmente, a impossibilidade de implementa��o de um sistema como esse � explicada, principalmente, por tr�s raz�es: o enorme contingente de cidad�os existente em um pa�s, a extens�o dos territ�rios nacionais e, conseq�entemente, o tempo que seria gasto para que decid�ssemos algo.
A democracia representativa
A democracia representativa n�o pode ser entendida como uma resposta hist�rica �s impossibilidades geradas pela democracia direta. Isso porque a trajet�ria do conceito de democracia n�o � linear. No s�culo XV, na Su�cia, foi criado um parlamento que dava a representantes do povo, da burguesia, do clero e da nobreza voz num parlamento. J� no s�culo XVII, funcionando como sistema de pesos e contrapesos - com o intuito de limitar o poder absolutista -, a Europa experimentou uma s�rie de experi�ncias de separa��o dos poderes. Ocupando lugar nos parlamentos, estavam cidad�os eleitos para representar determinadas parcelas da sociedade. � dessa escolha que nasce a id�ia de democracia representativa.O s�culo XX e a crise da representa��o
Ap�s quase cem anos, chegamos ao fim do s�culo XX acreditando na exist�ncia de uma crise dessa forma representativa. Mas o que nos leva a esse tipo de percep��o? Os representantes j� n�o conseguem mais identificar e atender todas as demandas da sociedade. Primeiro porque a globaliza��o e a economia mundial enfraqueceram o poder dos Estados. Segundo porque a sociedade tem se organizado melhor em torno de infinitas quest�es, e essas organiza��es t�m cobrado de maneira mais efetiva os governos e seus representantes. As exig�ncias v�m se tornando mais complexas, e parece clara a necessidade de interatividade entre o governo e a sociedade, ou seja, entre representantes e representados.
O papel das organiza��es no s�culo XXI
O conceito de democracia sofre ent�o uma nova guinada em sua din�mica trajet�ria. O sistema representativo j� n�o responde aos anseios da sociedade, e a democracia direta parece invi�vel. Como resultado, come�a a se fortalecer o conceito de democracia participativa, com caracter�sticas semidireta, ou seja, n�o desconsidera os representantes, mas aproxima a sociedade da arena decis�ria. De acordo com alguns te�ricos, a democracia participativa passa a configurar-se como um continuum entre a forma direta e a representativa.Nesse sentido, a Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) define em seu relat�rio sobre o �ndice de Desenvolvimento Humano de 2000 uma nova forma de se entender a democracia. J� n�o nos basta votar em elei��es livres, e nem tampouco garantir a exist�ncia de oposi��o, liberdade de imprensa etc. Essas exig�ncias j� fazem parte do conceito mais elementar de democracia. As na��es modernas precisam incentivar a sociedade a organizar-se. O objetivo � fazer com que, juntos, os cidad�os reivindiquem espa�o e avancem em suas conquistas. Ao Estado cabe oferecer ferramentas que catalizem essas demandas, afastando-se da cl�ssica vis�o horizontal de poder.
A participa��o institucionalizada no Brasil
A promulga��o da Constitui��o de 1988 iniciou a retomada do conceito de cidadania no pa�s. Durante a elabora��o da Carta Constitucional, a sociedade buscou participa��o na constru��o do texto oficial. Reconhecendo a import�ncia dessa contribui��o, foram criados tr�s mecanismos que aproximaram a constituinte da sociedade. O primeiro deles foi um banco de dados disponibilizado pelo Senado. O Sistema de Apoio Inform�tico � Constituinte (SAIC) coletou, por meio do preenchimento de um formul�rio distribu�do por todo o pa�s, 72.719 sugest�es. Al�m disso, a sociedade foi chamada para comparecer a reuni�es de subcomiss�es tem�ticas. Foram cerca de 400 encontros, de onde emergiram mais de 2.400 sugest�es.Ap�s a elabora��o do anteprojeto, uma terceira e �ltima possibilidade foi ofertada. De acordo com o artigo 24 do Regimento Interno da Constituinte, entidades associativas, legalmente constitu�das, teriam um prazo de pouco mais de um m�s para coletar 30.000 assinaturas e apresentar emendas a esse anteprojeto. A responsabilidade por tais sugest�es deveria ser encabe�ada por tr�s entidades. Durante o curto per�odo de tempo que tiveram, foram colhidas mais de 12 milh�es de assinaturas, e encaminhadas 122 emendas populares. Dessas, 83 atenderam �s exig�ncias regimentais e foram defendidas por interlocutores no Congresso.
O processo constituinte foi um claro exemplo do poder de mobiliza��o da sociedade em torno de quest�es de interesse coletivo. A coleta de 12 milh�es de assinaturas, as 2.400 sugest�es e o envio de quase 73 mil formul�rios ao SAIC transpareceram a esperan�a de que, ap�s o regime militar, est�vamos dispostos a participar ativamente das decis�es pol�ticas do pa�s.
A Constitui��o, no entanto, n�o respondeu a contento a essa demanda. O voto foi garantido a todos os cidad�os. Uma participa��o que fosse al�m desse instrumento pontual, no entanto, n�o foi contemplada. O referendo n�o foi utilizado ao longo dos anos que nos separam da promulga��o da Constitui��o. O plebiscito foi usado, nacionalmente, apenas uma vez - quando decidimos manter nossa rep�blica presidencialista. Por fim, as leis de iniciativa popular passaram a exigir um esfor�o descomunal da sociedade. Para apresentar uma lei � C�mara dos Deputados s�o necess�rias mais de um milh�o e cem mil assinaturas, o que corresponde a 1% de nosso eleitorado. Um �nico projeto venceu essa barreira. Sua aprova��o ocorreu em 1997, transformando-se na lei 9.840/97 que trata da corrup��o eleitoral. A sociedade, ap�s a marcante participa��o no processo constituinte, teve seus impulsos arrefecidos.
As modernas formas de participa��o
A despeito dos tradicionais canais de participa��o - garantidos em quase todas as constitui��es democr�ticas do mundo - o pa�s n�o assistiu a utiliza��o em escala razo�vel de tais instrumentos. Medidas inovadoras, no entanto, surgiram e tornaram-se exemplos emblem�ticos do compromisso de pol�ticos com a transpar�ncia e com a aproxima��o entre representantes e representados. O Brasil tornou-se um exemplo mundial no desenvolvimento de ferramentas alternativas de participa��o. Em 1989, destaca a ONU, o Or�amento Participativo de Porto Alegre tornou-se um s�mbolo do controle social sobre a aplica��o das verbas destinadas aos investimentos. A medida espalhou-se pelo pa�s, e hoje centenas de governos - estaduais e municipais - implementaram tais ferramentas.Em in�meras localidades tamb�m foram testadas, com sucesso, experi�ncias de Gest�o Participativa. Al�m de discutir os investimentos, a sociedade passou a participar de reuni�es que visavam democratizar o gerenciamento de alguns servi�os. Al�m dessa ferramenta, milhares de Conselhos Gestores de Pol�ticas P�blicas surgiram para discutir temas pontuais, dando aos governos diretrizes e id�ias a respeito de servi�os pontuais.
Por fim, surgiram as Comiss�es de Legisla��o Participativa, uma iniciativa inaugurada pela C�mara dos Deputados que, rapidamente, espalhou-se por dezenas de estados e munic�pios. A id�ia consiste em viabilizar a participa��o da sociedade nos trabalhos legislativos. A comiss�o recebe id�ias enviadas por organiza��es da sociedade, sem a necessidade de coleta de assinaturas, e as aprecia. Aprovadas nas reuni�es internas, as proposi��es passam a tramitar normalmente, como uma proposta parlamentar comum.
Escolas de pol�tica e educa��o para a cidadania
O que essas experi�ncias brasileiras apontam � que a implementa��o de tais ferramentas torna-se verdadeiras escolas de cidadania � popula��o participante, e o interesse se eleva de acordo com o funcionamento do mecanismo. Em Porto Alegre, por exemplo, aumentou muito o n�mero de participantes a medida em que a sociedade notou a efic�cia do instrumento. A percep��o de que a pol�tica transcende o voto � fundamental, sendo a delibera��o e a participa��o indispens�veis ao atendimento das modernas concep��es de democracia. Em outros casos, como, por exemplo, a Comiss�o de Legisla��o Participativa da C�mara dos Deputados, o interesse ainda � pequeno, o que gera algumas distor��es.A despeito dos ensinamentos que tais ferramentas oferecem aos cidad�os, temos um grande contingente que n�o reconhece a import�ncia de tais mecanismos e, consequentemente, n�o procura participar. Nesse caso, � necess�rio pensarmos em um rigoroso programa de educa��o pol�tica. A sociedade n�o pode descobrir a import�ncia da participa��o apenas na pr�tica, pois muitos n�o t�m a oportunidade, ou o interesse, de atuar. O papel do cidad�o precisa ser revelado na escola, como forma de legitimar ainda mais as ferramentas participativas e a democracia como um todo. Algumas iniciativas educacionais s�o emblem�ticas, mas alcan�ar o pa�s como um todo exige um esfor�o ainda maior, exige um compromisso governamental.
Humberto Dantas, doutorando em Ci�ncia Pol�tica pela USP, professor universit�rio, consultor do Instituto �gora do Eleitor e da Democracia e volunt�rio do Movimento Voto Consciente.