O que são pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos?

O artigo 37, § 6º da Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e privado, prestadoras de serviço público. O acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) proferido pela Segunda Turma no Recurso Extraordinário nº 262.651, de São Paulo, em 16 de novembro de 2004, faz uma reflexão sobre a aplicação do mencionado artigo aos terceiros não usuários envolvidos em um acidente ocorrido durante a prestação do serviço público, concluindo que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a outras pessoas que não ostentem a condição de usuário.

Posteriormente, o STF, na decisão proferida no Recurso Extraordinário n.º 591.874, do Mato Grosso do Sul, em 26 de agosto de 2009, em que o Tribunal Pleno reconheceu a repercussão geral do tema, muda o entendimento anterior, concluindo que “II – A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado.”

A partir do texto constitucional vigente, existiria responsabilidade civil objetiva das concessionárias de serviço público pelos danos sofridos por terceiros não usuários em um acidente havido em decorrência da prestação do serviço público concedido?

O mencionado dispositivo constitucional assim estabelece:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

§ 6o As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (grifo nosso)

O Constituinte, ao redigir o §6º do art. 37, alargou o campo de apreciação da responsabilidade objetiva, estendendo-a às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Entretanto, o dispositivo em questão nada diz a respeito de usuários ou não usuários do serviço, apenas faz referência genérica “a terceiros”.

Antes do julgamento proferido pelo STF no acórdão n.º 591.874, a jurisprudência da Suprema Corte brasileira entendia que as concessionárias de serviço público somente teriam responsabilidade objetiva em relação ao usuário do serviço público, sendo a responsabilidade em relação ao não usuário subjetiva. 

O julgamento do Recurso Extraordinário nº 262.651 - SP, de 16 de novembro de 2004, pela Segunda Turma do STF, permitiu que fosse feita uma reflexão sobre o alcance da norma inscrita no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e privado, prestadoras de serviço público. A responsabilidade objetiva de tais entidades com relação aos usuários do serviço não é objeto de controvérsias há um bom tempo. Porém, sua extensão ao terceiro não usuárioé fruto de acirrada polêmica na doutrina e jurisprudência pátrias.

A ideia de serviço público está intimamente conectada à função do Estado, ou seja, ao motivo de sua existência e o seu papel na sociedade. Para a materialização do bem comum, o Estado, ao realizar a atividade administrativa, presta serviço público.[1] 

Quando o Estado começou a se afastar dos princípios do liberalismo clássico e, sob a justificativa de atender com maior presteza aos reclamos de seus administrados, passou a interferir mais diretamente no exercício de determinadas atividades comerciais e industriais, consideradas até então como exclusivas da órbita privada, a análise do tema ganhou maior relevância. Paralelamente, o Estado percebeu que não dispunha de organização adequada para a execução de todos os serviços que lhe competia realizar e, consequentemente, passou a delegar sua execução a particulares.[2] 

Atualmente, impulsionado por contextos sócio-político-econômicos específicos, o Estado pode centralizar a execução de todos os serviços públicos, tanto os considerados essenciais à manutenção do próprio Estado e do corpo social como também aqueles entendidos como necessários, úteis ou oportunos aos interesses dos administrados. Ainda, pode ser levado por imperativos de segurança nacional ou interesses coletivos, ou transferir a execução desses mesmos serviços e atividades a pessoas jurídicas de direito privado ou a entidades por ele criadas ou autorizadas para esse fim.[3] 

                   A erosão da capacidade de prestação de serviços públicos, em função da inexistência de recursos para atender às demandas sociais com um mínimo de eficiência aceitável, levou a assunção de serviços públicos pela iniciativa privada, o que enseja uma reformulação de antigas noções, a fim de adaptar esses serviços aos novos tempos e ao modelo concorrencial. [4] 

A execução do serviço público por pessoas jurídicas de direito privado é viabilizada, notadamente por delegação, nas modalidades concessão e permissão.

                   A Constituição Federal de 1988, no caput do art. 175, prevê:“Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

                   A expressão “serviço público” é empregada em múltiplos sentidos, sendo definido de diversas maneiras pela doutrina. Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo. [5]

Dentro deste cenário de delegação da prestação de serviços públicos, surge a discussão sobre a responsabilidade civil de tais prestadores diante de danos porventura causados aos administrados. 

                   O Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) é o titular do serviço público, mas isso não significa que deve obrigatoriamente prestá-los por si ou por criatura sua quando detenha sua titularidade exclusiva. Na maioria dos casos, estará apenas obrigado a discipliná-lo e a promover-lhes a prestação.

                   Por meio da delegação, notadamente via concessão ou permissão, é que se viabiliza a execução dos serviços públicos por pessoas jurídicas de direito privado.[6] 

                   A responsabilidade civil do Estado, pela reparação dos danos que venha a causar aos cidadãos, é um dos fundamentos do Estado de Direito. O art. 37, §6º, da Constituição Federal estabelece a responsabilidade objetiva da Administração Pública, que é o dever de reparar prejuízos causados a terceiros.

                   Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 trouxe, como novidade acerca da responsabilidade civil prevista no art. 37, par. 6º, a sujeição passiva das pessoas jurídicas de direito privado, quando prestadoras de serviço público.

                   Por sua vez, o Código Civil Brasileiro, no art. 43, prevê, em consonância com a Constituição Federal, que “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.”, havendo omissão quanto às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.

                   Importante frisar que o dano a ser indenizado, tratado pelos Recursos Extraordinários nº RE nº 262.651 e RE nº 591.874 não diz respeito à responsabilidade contratual, que se origina da inexecução dos acordos de vontade. Cuida-se da responsabilidade extracontratual, ou aquiliana, em que o dano perpetrado provém da mera conduta e prescinde de qualquer tipo de prévia relação jurídica bilateral entre ofensor e ofendido. O ato causador do dano pode ser ainda, comissivo ou omissivo.

                   A adoção da teoria da responsabilidade objetiva alterou o fundamento principal da responsabilidade civil. Antes, o fundamento era a culpa, agora passou a ser o risco. Desse modo, possui o dever de indenizar quem pratica uma atividade suscetível de causar danos a terceiros.

                   À luz do § 6º, do artigo 37, da Constituição Federal, constata-se que, não obstante haver aplicação da teoria da responsabilidade objetiva também em face dos delegatários prestadores do serviço público, sua aplicação estará circunscrita ao objeto do contrato, ou seja, com relação aos danos causados a seus usuários e também não usuários. Caso se trate de responsabilidade civil não vinculada à prestação do serviço público, aplica-se as regras de Direito Civil.

                   Não existem dúvidas de que a responsabilidade objetiva do prestador de serviço público por delegação é a mesma atribuída ao Estado, caso ele mesmo estivesse praticando a prestação. Porém, há uma polêmica muito grande em relação à extensão desta responsabilidade ao não usuário do serviço público que sofre danos durante a sua prestação.

                   Em agosto de 2009, o STF trouxe luz sobre esta discussão ao entender, no julgamento do RE nº 591.874, que não seria possível fazer qualquer tipo de distinção entre os terceiros e os usuários do serviço público, porquanto ambos estão sujeitos ao dano decorrente da ação administrativa do Estado, seja o causado pela ação direta do ente estatal ou o decorrente da ação de pessoa jurídica de direito privado prestadora do serviço público.

                   Tal conclusão estaria ligada à própria natureza do serviço público, que, por definição, possui um caráter geral. Deste modo, a obrigação do prestador do serviço de fornecer uma atividade adequada ao usuário não pode eximir sua responsabilidade diante de terceiros atingidos pela sua atuação.

A responsabilidade induz, de imediato, à ideia de que o responsável deve responder perante a ordem jurídica em virtude de algum fato precedente. O fato e a sua imputabilidade a alguém constituem pressupostos do instituto da responsabilidade. A ocorrência do fato, verdadeiro gerador dessa situação jurídica, é indispensável, seja de caráter comissivo ou omissivo. De outro lado, é necessário que o indivíduo a que se impute responsabilidade tenha a aptidão de efetivamente responder perante a ordem jurídica pela ocorrência do fato.[7] 

                   Compactuamos com o entendimento do Pleno do STF, na medida em que a imputação da responsabilidade objetiva aos concessionários e permissionários de serviço público segue a lógica de que a atividade é estatal e apenas foi transferida por delegação ou concessão, conservando seu caráter originário de serviço público.

                   Assim, não há transferência da titularidade do serviço, mas apenas da execução. Não constituiria medida de justiça o fato de que a simples delegação de serviço retirasse o caráter de serviço público. Nesse caso, haveria fraude à Constituição, pois a transferência do serviço público para a pessoa jurídica privada bastaria para que o Poder Público se esquivasse do cumprimento do comando constitucional.

                   Deve-se considerar, por fim, que as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público agem por delegação, como se fossem o Estado, sendo que este responde objetivamente nos dois casos, seja o terceiro usuário ou não usuário do serviço.

Referências Bibliográficas

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Responsabilidade Civil das Pessoas Jurídicas de Direito Privado Prestadoras de Serviços Públicos.In: Revista Eletrônica de Direito do Estado. Número 13 – janeiro/fevereiro/março de 2008. Disponível em: //www.direitodoestado.com/revista/REDE-13-JANEIRO-2008-JOSE%20CARVALHO%20FILHO.pdf. Acesso em 18 de fevereiro de 2014, às 19:56.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.

FREITAS, Juarez (organizador). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006.

FURTADO, Lucas Rocha Furtado. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

JUSTEM FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8.ed., Belo Horizonte, Fórum, 2012.

MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. A responsabilidade objetiva das concessionárias de serviço público: A jurisprudência do STF e o papel da doutrina. In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo (Coordenação Geral: Marçal Justen Filho). Ano 1, vol. 0, maio-jun/2013. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais, 2013, p. 20.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno.  12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 38 ed.,  2012.

MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 17 ed., 2004.

PISETTA, Francieli. Responsabilidade civil das prestadoras de serviço público: um enfoque sobre o não usuário. São Paulo: LTR, 2013

ROLIM, Luiz Antonio. A Administração Indireta, as Concessionárias e Permissionárias em Juízo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

NOTAS:

[1] PISETTA, Francieli. Responsabilidade civil das prestadoras de serviço público: um enfoque sobre o não usuário. São Paulo: LTR, 2013, p.17.

[2] ROLIM, Luiz Antonio. A Administração Indireta, as Concessionárias e Permissionárias em Juízo.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 29-30.

[3] Ibid., p. 30.

[4]CARRASQUEIRA. Simone de Almeida. Revisando O Regime Jurídico das Empresas Estatais Prestadoras de Serviço Público. In: Direito Administrativo. Marcos Juruena Villela Souto (Coordenador-Geral). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 256.

[5] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 17 ed., 2004,

p. 632.

[6] PISETTA, 2013, p. 27.

[7]Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11., ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,p. 519.

Toplist

Última postagem

Tag