Pode deixar toda a herança para a instituição de caridade uma vez que seu irmão não é seu herdeiro necessário?

Por Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado

É muito comum que uma parte relevante dos questionamentos sobre sucessões envolva cônjuge ou companheiro, descendentes e legítima. Quando há meação? Quando há sucessão? Qual a consequência de cada regime de bem adotado? O cônjuge/companheiro concorre com os filhos ou não? Em qual percentual? Sobre quais bens? No entanto, há aqueles casos em que o futuro autor da herança não tem descendentes, não tem cônjuge ou companheiro e nem ascendentes vivos. Só ele e seus irmãos. O que acontece quando essa é a situação concreta?

Sobre os irmãos há uma peculiaridade interessante no Código Civil: diferentemente dos cônjuges/companheiros, descendentes e ascendentes, os irmãos são herdeiros legítimos, porém não são herdeiros necessários. Isso significa dizer que em relação aos irmãos não há necessidade de respeito à legítima, ou seja, o autor da herança não precisa reservar 50% dos seus bens.

Os irmãos, classificados como herdeiros colaterais (de segundo grau), ocupam a quarta posição na ordem de vocação hereditária trazida pelo art. 1.829 do Código Civil. Assim, em regra, se tem descendente, cônjuge/companheiro ou ascendentes, os irmãos não serão agraciados com a sucessão do autor da herança, salvo se houver testamento que os favoreça (testamento referente à parte disponível do patrimônio).

Por outro lado, o futuro autor da herança que só tenha irmãos pode se deparar com três cenários diferentes: a) deixar seguir a sucessão pelas disposições do Código Civil; b) fazer testamento contemplando-os ou c) deixar testamento excluindo-os por completo da sucessão, isto é, nada deixando para os irmãos. Qualquer um desses cenários é plenamente factível.

Pelo primeiro cenário – sucessão pelas disposições do Código Civil – todo o patrimônio do autor da herança será repartido entre os irmãos. Caberá, contudo, averiguar se esses irmãos são bilaterais (filhos do mesmo pai e da mesma mãe que o autor da herança) ou se são unilaterais (filhos ou da mãe ou do pai do autor da herança). Se bilaterais – e apenas bilaterais – repartirão a herança em iguais partes entre si. Logo, se três irmãos bilaterais, a herança será repartida em três partes iguais. Da mesma forma, se todos os irmãos forem unilaterais, a repartição será igualitária. O imbróglio vem a se instaurar quando há diversidade na natureza dos irmãos, ou seja, irmãos bilaterais e irmãos unilaterais fazem jus à mesma herança.

Nesse caso, os irmãos unilaterais receberão a metade daquilo que for destinado aos irmãos bilaterais. Veja a redação do art. 1.841 do Código Civil:

Art. 1.841. Concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar.

Parece um pouco confuso, mas não é. Imagine que o autor da herança tenha três irmãos bilaterais e dois unilaterais. Para iniciar o cálculo, a herança deve ser dividida por oito. Sim, por oito. A lógica da conta é que cada irmão bilateral corresponde, em tese, a dois irmãos unilaterais (irmão por dois vínculos x irmão por um vínculo só). Assim, multiplique o número de bilaterais por dois e some com os unilaterais. No exemplo dado, veja a matemática: 3 x 2 + 2 = 8. Uma vez dividida em oito partes iguais, como os unilaterais receberão a metade do que couber aos bilaterais, a cada bilateral será destinado 2/8 da herança (o que equivale a 1/4) e a cada unilateral, 1/8.

Já no tocante ao segundo cenário – testamento contemplando os irmãos – como estes não são herdeiros necessários, não há necessidade de reserva da legítima. Assim, é livre a disposição testamentária pelo testador em favor dos irmãos, podendo deixar 100% do patrimônio para ser dividido em partes iguais entre eles, mesmo que haja irmãos bilaterais e unilaterais a serem contemplados. Pode dispor percentuais diferentes entre eles, por exemplo, de acordo com a afinidade entre testador e o irmão beneficiado (um irmão pode receber 80% da herança, outro 15%, um terceiro 5%). Um irmão pode estar inserido no testamento e o outro não. Enfim, as possibilidades são diversificadas e vão de acordo com a exclusiva vontade e autonomia do testador.

Por último, o terceiro cenário decorre justamente do fato de os irmãos não serem herdeiros necessários e da desnecessidade de observância da legítima. É dizer, o testador pode simplesmente dispor em testamento da integralidade de seus bens e não inserir dentre os beneficiários nenhum irmão existente. Pode, por exemplo, deixar tudo em prol de uma instituição de caridade. Logo, os irmãos ficarão completamente excluídos dessa sucessão e isso será perfeitamente legal, uma vez cumpridos os requisitos de validade do testamento.

Como é possível notar, a autonomia é exercida de forma ampla e livre pelo titular do patrimônio quando não existem herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro). Sem a imposição de reserva da legítima, incumbe ao titular do patrimônio e futuro autor da herança dispor dela da forma que melhor lhe convier, pelos critérios que quiser, desde que assim o faça através de testamento.

Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, , e coordenadora geral cível na ARM | Mentoria Jurídica  em Belo Horizonte/MG.

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