Quais os tipos de amizade para Aristóteles?

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Quais os tipos de amizade para Aristóteles?

Matemático e membro da Academia Brasileira de Ciências. É diretor-adjunto do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e Coordenador da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP).

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05/09/2019 06:00

Marco Antonio de Avila Zingano - Professor de filosofia antiga na USP

No blog anterior, havia dito que Aristóteles, ao estudar o fenômeno humano da amizade, buscou defini-la como benevolência prática recíproca e consciente. Faltou, porém, dar destaque a mais um elemento, através do qual justamente Aristóteles vai distinguir entre diferentes tipos de amizade. Refiro-me ao objeto de amizade. Toda amizade é benevolência prática recíproca consciente relativamente a um objeto determinado. Os objetos de amizade reduzem-se, segundo Aristóteles, a três grandes tipos: virtude ou bem; prazer; utilidade. Fazemos amigos e mantemos convívio com eles seja em função do prazer, seja em função da utilidade, seja em função do agir bem, da virtude ou do bem.

É peculiar a Aristóteles ter visto que nossas relações de amizade se desenvolvem em torno destes três objetos. Isso permite já a Aristóteles fazer toda uma análise fenomenológica da amizade. Os jovens privilegiam as relações em que o objeto buscado de amizade é fundamentalmente o prazer, o divertimento. Os velhos, por outro lado, tendem a unir-se em amizade em torno da utilidade. Por fim, os agentes maduros enfatizam a amizade quando o amigo age bem, age honestamente, atua de modo moral. Em todos estes casos, há amizade quando a relação se faz de modo recíproco e consciente com vistas a proporcionar ou utilidade, ou prazer ou bem ao amigo. O ponto importante é que, para Aristóteles, bem, utilidade e prazer, os objetos últimos de amizade, são irredutíveis uns aos outros ou a algo externo a eles. Isso faz com que não haja uma só amizade, os outros casos sendo meramente semelhantes, sem serem casos reais de amizade. Para Aristóteles, todos estes três casos (com a imensidade de versões internas a cada um: grupos de amigos que giram em torno de tal ou tal divertimento, pessoas que se reúnem e convivem em torno de tal e tal atividade, e assim por diante) são casos genuínos de amizade (desde que, é claro, o amigo busque o objeto de amizade em questão para ao amigo enquanto outro, como havíamos visto no blog anterior). Em cada caso, as pessoas convivem e se relacionam segundo as regras da amizade, a despeito de haver três tipos distintos de objeto de amizade.

O fato de reconhecer não somente um, mas três modos gerais de amizade é característico da análise aristotélica. Nem sempre isso foi reconhecido. No comentário da obra de Aristóteles, até os anos 60 costumava-se dizer que havia um somente caso de amizade, a amizade segundo a virtude ou o bem, os outros dois casos – a amizade segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade – não sendo realmente casos de amizade, basicamente porque não se via como seria possível nestes dois outros casos proporcionar o objeto de amizade – no caso, prazer ou utilidade – para o amigo enquanto amigo e não, direta ou indiretamente, para si próprio. Proporciono ao outro divertimento porque quero me divertir; proporciono ao outro certa utilidade porque quero tirar proveito disso: se for isso, então não são casos próprios de amizade. Mas isso não é verdade, ou nem sempre. É certo que é mais difícil ver nestes dois casos realizações genuínas de amizade, mas isso não é impossível. Sempre que ajo com vistas ao meu próprio usufruto, não ajo como amigo – mas é possível proporcionar divertimento ou utilidade ao outro para ele próprio e, assim, estabelecer relações próprias de amizade em torno do prazer e da amizade (ainda que sejam menos estáveis que a amizade segundo a virtude, pois nelas o interesse pelo outro tende a apagar-se mais rapidamente em prol do interesse por si próprio). De qualquer modo, é tese aristotélica que há três casos genuínos e irredutíveis de amizade: segundo a virtude, segundo o prazer e segundo a utilidade. (Aristóteles considerou que, no caso da amizade pela virtude, interesso-me pelo sujeito em sua integralidade, ao passo que, nos dois outros casos, interesso-me por um aspecto do sujeito, seja sua capacidade em divertimento, seja sua capacidade de gerar utilidade. Isso foi lido como se somente o primeiro caso fosse amizade, mas não os outros dois; essa leitura, porém, dificilmente faz jus ao texto de Aristóteles; devemos aos trabalhos pioneiros de John Cooper clareza sobre este ponto.)

Assim, estabelecemos relações em torno de três objetos irredutíveis entre si ou a algo exterior, o que leva Aristóteles a afirmar que há três tipos distintos de amizade. Isso é um ganho conceitual considerável, pois nos alerta a não tentar reduzir estes casos a um só ou a desconsiderar os outros casos como modos ilegítimos de amizade. Contudo, se há três tipos diferentes de amizade, fundados em objetos que não se deixam reduzir entre si ou a algo exterior a eles, em que sentido podemos falar propriamente de amizade em todos eles? Não estaríamos lidando com um termo homônimo como pena, que designa (entre outras coisas) o que recobre as galinhas e um certo sentimento que temos, sem que nada haja em comum entre eles? Para Aristóteles, há algo em comum entre os diferentes tipos de amizade, o que precisamente nos autoriza a falar em casos legítimos de amizade, sem que isso, contudo, nos permita reduzi-los a um só tipo. Ademais, segundo Aristóteles, existe uma hierarquia entre estes três distintos casos de amizade. Mais precisamente, a amizade segundo a virtude ou o bem é a amizade primeira, as outras duas sendo tipos secundários de amizade. Como, porém, garantir que são tipos legítimos de amizade e, ainda, que existe uma hierarquia entre eles, se são tipos distintos e irredutíveis entre si?

Para responder a esta questão, é preciso ver que a resposta que Aristóteles oferece na Ética Eudêmia é diferente da que apresenta na Ética Nicomaqueia. Com efeito, na Ética Eudêmia, Aristóteles tentou resolver as duas questões com uma mesma resposta, como se quisesse derrubar dois paus com uma mesma tacada. Na EE, Aristóteles introduz uma relação conceitual de dependência que veio a ser chamada de unidade focal de significação: a amizade segundo a virtude é a amizade primeira justamente porque as outras duas, a amizade segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade, fazem referência a ela. Este tipo de unidade conceitual foge à estrutura de um termo universal (que se aplica do mesmo modo a todas as suas instâncias), ao mesmo tempo em que evita a pura homonímia (pois estabelece uma certa conexão entre os itens assim relacionados). Desse modo, Aristóteles conseguia postular uma conexão entre os três diferentes tipos de amizade ao mesmo tempo em que estabelecia uma hierarquia entre eles. Ocorre, contudo, que não parece aceitável que a amizade segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade façam referência à amizade segundo a virtude; na verdade, o contrário é que se impõe, pois estas duas estabelecem suas relações de amizade em inteira indiferença às relações de virtude ou bem requeridas pelo suposto primeiro modo de amizade. Assim, a proposta de unificar o campo conceitual da amizade por meio da noção de unidade focal de significação (ou, em grego: relação pros hen) parece fadada a fracassar. (E de fato fracassa, mas somente para o caso dos diferentes tipos de amizade; mais adiante, em outro blog, veremos como Aristóteles aplica com grande sucesso à dispersão categorial originária do ser este mesmo tipo de unidade conceitual.)

Na EN, vemos que Aristóteles está preocupado com o mesmo problema (o de unificar em um único campo conceitual os três tipos distintos de amizade), mas não é mais feita referência alguma à noção de significação focal. Em seu lugar, encontramos a noção de unidade por semelhança (ou, em grego, kath’ homoiotêta): segundo esta relação, os três diferentes tipos de amizade são tipos legítimos de amizade porque estabelecem comportamentos análogos entre os amigos. Em cada caso, buscam, de modo recíproco e consciente, beneficiar o amigo, salvo que o fazem em função de três objetos distintos e irredutíveis entre si: a virtude ou bem; o prazer; a utilidade. Porém, a relação de semelhança é simétrica, de modo que, se a é semelhante a b, então b é semelhante a a, não se podendo impor nenhuma hierarquia entre eles com base na simples relação de semelhança. Ora, Aristóteles queria não somente conectar conceitualmente os três tipos de amizade, mas também estabelecer uma hierarquia entre eles; como pode propor uma hierarquia, se a noção de semelhança é simétrica e não cede por si mesma nenhuma ordem entre os membros relacionados? Aqui está uma importante diferença entre a EE e a EN: enquanto a primeira queria derrubar dois paus com uma mesma tacada, Aristóteles, na EN, resolve primeiro o problema da unidade conceitual dos tipos de amizade (por meio da noção de semelhança) para somente depois, com um outro argumento, estabelecer uma hierarquia entre os tipos. Muito sucintamente, o argumento independente do da semelhança com base no qual estabelece uma hierarquia é a ideia que em um caso somente, a amizade segundo a virtude, seu objeto é tal que necessariamente produz prazer e utilidade ao amigo, ao passo que, nos outros dois casos, isso pode ocorrer, mas só acidentalmente. Deste modo, unicamente a amizade segundo a virtude é completa (pois necessariamente gera os outros dois tipos de amizade) e, por ser completa, ela é perfeita; ora, sendo perfeita, ela é o caso primeiro de amizade (como Aristóteles queria em sua hierarquia), ao passo que os outros dois tipos de amizades, por serem somente acidentalmente completos, são casos secundários de amizade.

Ao assim distinguir dois argumentos (o da unidade e o da hierarquia) para os três diferentes tipos de amizade, não mais postulando um só argumento (o da unidade-hierárquica), Aristóteles é agora dono de uma análise mais fecunda da amizade, em que esta última se vê refratada em três casos distintos, mas conceitualmente unificados e, como o Estagirita queria, não refratários a uma certa hierarquia (na qual a amizade segundo a virtude figura como a unidade primeira, já que é perfeita porque completa). O estudo do fenômeno humano da amizade foi, deste modo, lugar para o desenvolvimento de sutilezas lógico-conceituais, como é costumeiro em Aristóteles.

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