Que hipóteses autorizam a desconsideração da personalidade jurídica no CDC?

1. INTRODUÇÃO

A desconsideração da personalidade jurídica é um tema de suma importância, especialmente para os advogados que atuam na área consumerista, haja vista que este instituto pode ser aplicado para garantir a maior defesa do consumidor.

Inicialmente, é preciso ressaltar que o instituto não acarreta a extinção da pessoa jurídica, apenas enseja a “suspensão da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica”. Ademais, a sua aplicação deverá ser episódica e casual (ou seja, excepcional). Em regra, a autonomia patrimonial deve ser preservada, de modo que a pessoa jurídica deve ser a parte legítima para demandar e ser demandada em juízo, em razão dos direitos e obrigações que titulariza, não se almejando atingir o patrimônio dos seus integrantes.        

O tema é interdisciplinar e para melhor compreendê-lo, torna-se necessária a análise conjunta do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e dos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil.

2. HIPÓTESES DE DESCONSIDERAÇÃO

No caput e no §5º do art. 28 do CDC, constam as hipóteses de Desconsideração no Direito do Consumidor, que são muitas, diga-se de passagem: a) abuso de direito; b) excesso de poder; c) infração da lei, fato ou ato ilícito; d) violação dos estatutos ou contrato social; e) falência; f) estado de insolvência; g) encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração; h) sempre que a personalidade da pessoa jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Havia alguns questionamentos sobre essa última hipótese elencada, no entanto o entendimento jurisprudencial abaixo mencionado (recente, inclusive), esclarece qualquer dúvida sobre o assunto:

“O art. 28, §5º, do CDC contém hipótese de desconsideração da personalidade jurídica por aplicação da teoria menor[1]”.

No contexto das relações de consumo, a mera insolvência da pessoa jurídica autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, presumindo-se a existência de fraude, com base na teoria menor. Desse modo, não é necessário demonstrar a existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, requisitos presentes no art. 50 do Código Civil e aplicável, portanto, às relações cíveis.

“No contexto das relações de consumo, em atenção ao art. 28, §5º, do CDC, os credores não negociais da pessoa jurídica podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação da disregard doctrine, bastando a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos em face da insolvência da sociedade empresária[2]”.

“A mera prova da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, é o suficiente para se levantar o véu da personalidade jurídica da sociedade empresária[3]”.

3. DESCONSIDERAÇÃO DE OFÍCIO

Um ponto extremamente relevante para a prática é que no âmbito das relações de consumo, a desconsideração pode ser aplicada de ofício, desde que seja verificada a configuração de uma das hipóteses do art. 28 pelo magistrado. Essa possibilidade decorre do fato de o CDC prescrever normas de ordem pública e interesse social, conforme o art. 1º da Lei 8.078/90.

Ademais, se objetiva facilitar a proteção dos consumidores, considerados vulneráveis nas relações contratuais, assim como assegurar o princípio da proibição do retrocesso, considerando-se que anteriormente, no CPC/73, era possível que o juiz decretasse a desconsideração de ofício, de modo que com o CPC/15 é preciso manter a mesma lógica para não retroceder na proteção desses sujeitos.

4. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O requerimento da desconsideração da personalidade jurídica, necessário quando este instituto não for aplicado de ofício pelo magistrado, pode ser realizado na própria petição inicial ou através da instauração de um incidente, a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir (art. 133, CPC).

Caso se opte por requerer a desconsideração na própria petição inicial, conforme autorizado pelo § 2º do art. 134 do CPC, tanto a pessoa jurídica como o seu integrante (sócio ou administrador) deverão ser citados para a demanda e devem se defender por meio de contestação.

O incidente é uma modalidade de intervenção de terceiros, pois provoca o ingresso de terceiro (sócio ou outra pessoa jurídica do mesmo grupo societário) em juízo. Neste sentido, não é preciso ingressar com uma ação autônoma, conforme se observa abaixo:

“A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva) levantar o véu da personalidade para que o ato de expropriação atinha os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros[4]”

            No momento de elaborar a petição, deve-se endereçá-la ao juiz do processo ou ao relator do recurso (lembrem-se de que se trata de um incidente!). É preciso requerer a instauração do incidente, demonstrar o preenchimento de todos os pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica (art. 134, § 4º, CPC), assim como deve ser formulado o pedido de citação dos que serão atingidos pela decisão que o acolher: sócios, administradores e até mesmo a pessoa jurídica (na hipótese de desconsideração em sentido inverso). (art. 135, CPC).

A) MOMENTO: Esse incidente pode ser instaurado em qualquer fase do processo (processo de conhecimento; cumprimento de sentença; execução fundada em título executivo extrajudicial) (Art. 134, CPC/15 e REsp 1.180.191).

B) TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA: É possível formular o pedido de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e, concomitantemente, o pedido de concessão de tutela provisória de urgência previsto pelos arts. 300 e seguintes do CPC nas situações em que não se pode aguardar a citação dos sujeitos que serão atingidos pelo instituto, pois pode haver frustração do resultado útil do processo (desvio ou ocultação de bens por parte de sócios, administradores e pessoas jurídicas que podem ter seu patrimônio constrito)[5].

C) RECORRIBILIDADE: O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será resolvido por meio de uma decisão interlocutória recorrível por agravo de instrumento (Art. 136 e art. 1.015, inciso IV, do CPC). No entanto, se, eventualmente, o juiz decidir o incidente por meio de sentença, caberá apelação para impugnar tal decisão, nos termos do art. 1.009 do CPC.

É importante se atentar para o fato de que:

A pessoa jurídica não tem legitimidade para interpor recurso no interesse do sócio, ou seja, para impugnar a decisão que desconsiderou a personalidade jurídica, pois ela se beneficiou da referida decisão, ao ter os efeitos de uma obrigação que originariamente era sua direcionados para o sócio”. Recurso Especial Repetitivo 1.347.627/SP.

Outro questionamento comum é acerca da necessidade de comprovar a inexistência de bens do devedor, observa-se que o STJ já se posicionou sobre o assunto, em 2018:

 “Se a insolvência não é pressuposto para decretação da desconsideração da personalidade jurídica, não pode ser considerada, por óbvio, pressuposto de instauração do incidente ou condição de seu regular processamento[6]”.

5. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA

A desconsideração inversa ocorre com a quebra de autonomia patrimonial a fim de executar bens da sociedade por dívidas pessoais dos sócios (art. 133, §2º, CPC). Desse modo:

“A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente ao que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dirá, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador[7]”.

Chamo a atenção para o fato de que todos os dispositivos processuais aplicáveis à modalidade “convencional” de desconsideração, também se aplicam à desconsideração inversa, conforme o art. 133, §2º do CPC[8].

6. RESPONSABILIDADE DE ALGUNS TIPOS DE SOCIEDADE

            O art. 28, §§1º ao 4º, do CDC define a responsabilidade de alguns tipos de sociedade:

A) SOCIEDADES INTEGRANTES DOS GRUPOS SOCIETÁRIOS: O grupo de sociedades é formado pela sociedade controladora e suas controladas, mediante convenção, pela qual se obrigam a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns. Segundo o CDC, esgotados os recursos, seja da sociedade, seja da sociedade controlada, qualquer outra integrante do grupo responde pela dívida perante os consumidores (RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA).

B) SOCIEDADES CONTROLADAS: É aquela cuja preponderância nas deliberações e decisões pertencem à outra sociedade, dita controladora. Assim, diante de manifesta insuficiência dos bens que compõem o patrimônio da sociedade controladora, a sociedade controlada responde pelas dívidas (RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA).

C) SOCIEDADES CONSORCIADAS: O consórcio é uma reunião de sociedades que se agrupam para executar um determinado empreendimento, de modo que a responsabilidade entre as sociedades consorciadas é solidária (RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA).

D) SOCIEDADE COLIGADAS: As empresas são coligadas quando uma participa com mais de 10% do capital da outra, porém, sem controla-la. Justamente pela falta de controle nas deliberações das decisões de uma sobre a outra é que a responsabilidade de cada qual é apurada mediante culpa na participação do evento danoso (RESPONSABILIDADE APURADA MEDIANTE CULPA).

Que hipóteses autorizam a desconsideração da personalidade jurídica no CDC?

            Espero que este artigo tenha sido útil e esclarecedor! Qualquer dúvida, me coloco à disposição.


[1] STJ, REsp 1.658.568, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJ 18/10/2018.

[2] STJ, REsp 737.000, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T, DJ 12/09/11.

[3] STJ, AgRg no REsp 1.106.072, Rel. Min. Marcos Buzzi, DJ 18/09/14.

[4] STJ, REsp 331.478, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 4ª T., DJ 20/11/06.

[5] Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/184/edicao-1/incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica. Acesso em 23 jan. 2020.

[6] STJ – REsp: 1729554 SP 2017/0306831-0, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 08/05/2018, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/06/2018.

[7] STJ – REsp: 948117 MS 2007/0045262-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 22/06/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/08/2010.

[8] Art. 133. § 2º, CPC. Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Quais casos o CDC permite que o juiz desconsidere a personalidade jurídica?

28 do Código de Defesa do Consumidor: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Quais são as hipóteses autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica expressamente previstas no Código de Defesa do Consumidor?

São hipóteses autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica expressamente ... excesso de poder. violação dos estatutos ou contrato social. abuso de direito.

Quando e cabível o incidente de desconsideração da personalidade jurídica?

§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

Como funciona a desconsideração da personalidade jurídica na relação de consumo?

“O art. 28, §5º, do CDC contém hipótese de desconsideração da personalidade jurídica por aplicação da teoria menor[1]”. No contexto das relações de consumo, a mera insolvência da pessoa jurídica autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, presumindo-se a existência de fraude, com base na teoria menor.