A característica formadora da cultura brasileira apresentada nesse texto 1 é

Introdução

1É senso comum ouvir que o Brasil é um país repleto de sonoridades e cores, com um povo espontâneo e falante. Por vezes, não nos damos conta do registro de identidade por trás de tal afirmação. Podemos, mediante este registro, indagar se o povo brasileiro pertence a uma sociedade essencialmente poética, entendendo o poético pelo circuito de três esferas: 1. A música (a sonoridade e o ritmo); 2. A visualidade (as imagens que as palavras sugerem na mente) e 3. O jogo com o significado? Quais seriam as consequências de tal possibilidade para o desenvolvimento cognitivo da população no contexto da digitalização do conhecimento?

2Neste artigo, observamos os dados da pesquisa do Instituto Pró-Livro –retratos da leitura no Brasil, 2011 (3ª edição), 2016 (4ª edição) e 2020 (5ª edição), a fim de melhor avaliar a hipótese de que a cultura midiática digital determina as competências de interpretação crítica das informações e a construção do conhecimento de uma população que lê pouco e cuja cultura é majoritariamente oral, musical e visual. No Brasil, podemos dizer que a relação entre a cultura do ver (sociedade da imagem) e a cultura do ouvir sempre sobrepujou a prática da leitura e da escrita. Alguns estudos recentes acerca da leitura e do digital nos ajudam a melhor compre­ender o que ocorre no Brasil.

3De acordo com a neurocientista Maryanne Wolf (2019, 82): “a formação do circuito do cérebro leitor é uma façanha epigenética única na história intelectual da nossa espécie”. Em sua pesquisa, ela observou o trajeto dos inputs entre os dois hemisférios do cérebro, incluindo os quatro lobos em cada um (frontal, temporal, parietal e occipital) que perpassam todas as camadas cranianas durante o ato da leitura. Nesta observação ficou claro que o cérebro é estimulado em sua completude quando os olhos estão envolvidos na leitura. O olhar atento e calmo e o tempo lento desprendido nesta atividade são dois fatores determinantes para que se consiga atingir a profundidade.

  • 1  Usamos o termo “capacidade cognitiva humana expandida”, porque a habilidade em formar circuitos no (...)

4Segundo Wolf, tal circuito cerebral possui uma natureza plástica, e forma sua capacidade cognitiva humana expandida1 pelo ato da leitura profunda. Esta capacidade cognitiva, no entanto, se encontra ameaçada pela leitura praticada no meio digital, cujas características moldam o cérebro de forma diferente e, ao que parece, sem que se estabeleçam conexões neurais que deveriam favorecer o espírito analítico e crítico de um indivíduo, sua capacidade de memória, empatia e sensibilidade à alteridade.

  • 2  Disponível em: https://www.prolivro.org.br/pesquisas-retratos-da-leitura/as-pesquisas-2/ Acesso em (...)

5Podemos avaliar as hipóteses de Wolf a partir dos dados publicados na página oficial do Instituto Pró-Livro2. Em 2011, foram feitas 5.012 entrevistas em 315 municípios brasileiros entre 11 de junho e 3 de julho. Para a edição de 2016, foram 5.012 entrevistas em 317 municípios realizadas entre 23 de novembro e 14 de dezembro de 2015. Para a edição de 2020, foram 8.076 entrevistas, que abrangeram 208 municípios entre outubro de 2019 e janeiro de 2020. Todas as vezes, a coleta de dados foi encomendada ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). Quanto aos dados da 5ª edição, publicados em 2020, a pesquisa foi feita antes da pandemia do novo coronavírus, não refletindo, portanto, os impactos da emergência sanitária na leitura no país.

6Após apresentarmos os dados da leitura no Brasil e sua evolução entre 2011 e 2020, problematizaremos a questão dos baixos índices de leitura e seus possíveis efeitos, especialmente com a presença massiva das tecnologias digitais na vida dos leitores e não leitores no país (Liu, 2005; Wolf, 2019) e veremos como a cultura musical interfere e influi na formação cultural e estética no Brasil (Solberg, 2009; Wisnik, 2009). Trataremos da questão da formação de uma cultura do ver e do ouvir que pode ser caracterizada por uma perspectiva poética sobre a realidade (Zumthor, 2005; Zambrano, 2006; Juarroz, 2000) e determinar, inclusive, o uso das mídias digitais e a diminuição e abandono da atividade de leitura. A pergunta que permanece em aberto é: quais seriam as consequências de tal perda na capacidade leitora?

Os dados sobre a leitura no Brasil

7A pesquisa do Instituto Pró-Livro classifica a população entrevistada entre leitores e não-leitores, sendo os primeiros “aqueles que leram, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses”, e os segundos: “aqueles que declararam não ter lido nenhum livro nos últimos 3 meses, mesmo que tenham lido nos últimos 12 meses” (Instituto, 2020). Ao lançar um primeiro olhar para as duas últimas edições da pesquisa, o que chama mais atenção entre os dados de 2016 e 2020 é a diminuição no número de leitores. A quinta edição da pesquisa, publicada em janeiro de 2020, mostra que o Brasil perdeu nos últimos quatro anos (2015-2019), mais de 4,6 milhões de leitores. A porcentagem diminuiu de 56% (2015) de leitores para 52% (2019). Cerca de 48% não leram livro algum no período dos últimos 3 meses anteriores, o equivalente segundo a pesquisa a 93 milhões, de um total de 193 milhões de brasileiros. Esta diminuição ocorreu entre os mais ricos, sobretudo entre as pessoas com ensino superior, passando de 82% (2015) para 68% (2019). Na classe A, o percentual de leitores passou de 76% para 67%.

8Ora, o problema da falta de leitura no Brasil sempre foi atribuído, além dos altos índices de analfabetismo e do analfabetismo funcional, a uma falta de hábito em parte determinada pela dificuldade de acesso ao livro, e por se tratar de um bem relativamente caro para a população de baixa renda que já não tem o hábito da leitura (Cordeiro, 2018; Zappone, 2018). Houve, de forma esparsa a partir da década de 1980 e com mais intensidade nos últimos 20 anos, uma série de ações por parte do Estado para diminuir os índices de analfabetismo e facilitar o acesso ao livro, sobretudo com a criação de bibliotecas nas escolas e de políticas públicas de incentivo à leitura: PROLER; Política Nacional do Livro – PNL; Plano Nacional do Livro e da Leitura – PNLL; Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE.

9Ainda assim, o número de leitores no Brasil continuou diminuindo. Os dados de 2020 mostram que tal queda atinge a população mais abastada e com ensino superior; justamente aquela que, historicamente, teve mais acesso e familiaridade com o hábito da leitura. A Internet e as redes sociais são apontadas pela pesquisa como a principal razão para a queda no percentual desses leitores. A questão que se coloca, portanto, embora continuemos certos de que políticas de incentivo à leitura são indispensáveis e devem continuar, é quais outros fatores atuam contra a leitura como hábito e como meio de construção de conhecimento?

10Da globalidade dos entrevistados, o estudo mostra que 82% gostariam de ter lido mais, quase metade (47%) alega não ter lido por falta de tempo e, entre os não leitores, 34% apontaram a falta de tempo. Outros 28% disseram simplesmente que não gostam de ler. Entre 2011 e 2020 a Internet e a rede WhatsApp ganharam espaço entre as atividades preferidas no tempo livre de todos os entrevistados, leitores e não leitores. Na pesquisa publicada em 2016, 47% disseram usar a Internet no tempo livre; em 2020, esse número aumentou para 66%. Nesse mesmo espaço de tempo, o uso da rede WhatsApp passou de  3% para 62%. Deduz-se que as pessoas diminuíram a leitura de livros e aumentaram o uso das redes sociais.

  • 3  “As a result, we speculate that one likely contributor to declining empathy is the rising prominen (...)

11A respeito dessas mudanças que, ao que as pesquisas indicam, não concernem apenas ao Brasil, sabemos que são acompanhadas de uma série de transformações nos hábitos, na cognição e na sensibilidade das pessoas. As pesquisas de Konrath et al. (2011), por exemplo, mostram que a capacidade leitora afeta até mesmo o nível de empatia. Segundo eles, se observados os níveis de empatia dos estudantes americanos entre 1979 e 1995, observa-se um acréscimo ano a ano da empatia. No entanto, entre os anos 2000 e 2009, esses níveis diminuem de forma acentuada em todos os indicadores: 40%. A conclusão, ainda hipotética, dos autores especula: “que um dos prováveis fatores do declínio da empatia é o aumento proeminente do uso de tecnologia pessoal e midiática na vida cotidiana. Claramente, essas transformações têm afetado fundamentalmente a vida de todos aqueles que têm acesso a elas”3 (Konrath et al., 2011, p. 11). É fato que o ato de assumir a perspectiva do outro na atividade de leitura profunda (identificação com personagens de romances, por exemplo) é uma das maiores contribuições da literatura à consciência da alteridade.

12Outra questão que aparece relacionada à migração da leitura de livros impressos para digitais é a dos problemas de baixa atenção devido aos déficits induzidos pelo próprio ambiente digital (Steiner-Adair, 2014). Sem concentração, não se atingem níveis de profundidade que permitam ao cérebro fazer conexões necessárias e engajar o conhecimento prévio na análise do que se lê. Finda-se por buscar complementos informativos em bancos de dados externos (o Google, por exemplo).

13A pesquisa do Instituto Pró-livro, em 2011, perguntou: “O que o brasileiro gosta de fazer no tempo livre?”. Aqui constatou-se que assistir televisão aparecia em primeiro lugar com 77%; ouvir música em segundo lugar, com 53%; descansar surgia em terceiro lugar com 50%; ouvir rádio aparecia em quarto lugar com 39% e ler em quinto com 35%. De todos esses itens, as atividades ligadas ao audiovisual somam 169% contra 45% de atividades relacionadas à leitura e escrita. Apenas 10% dos brasileiros afirmam que seu principal hobby é escrever.

14Apesar do número de analfabetos ter caído de 21 milhões (2011) para 11 milhões (2020), esse número não indica o aumento da leitura. Os analfabetos correspondem a 86% dos ouvintes de rádio e 63% dos telespectadores. Outro dado que chama a atenção é referente ao acesso à educação superior. Em 2011, o país tinha apenas 9% (15 milhões) da população de nível superior, em 2020 são 34%, ou seja, 72,2 milhões. Apesar do crescimento entre 2011 e 2020, a entrada de jovens no ensino superior continua incompatível com os padrões internacionais. Enquanto a média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de pessoas entre 25 e 34 anos cursando o ensino superior é de 36%, no Brasil este número é de 23,1%.

15Conforme a pesquisa, entre as principais motivações que impulsionam os leitores brasileiros estão: o gosto pela leitura (25%), atualização cultural (19%), distração (15%), motivos religiosos (11%), crescimento pessoal (10%), exigência escolar (7%) e atualização profissional ou exigência do trabalho (7%). Todas essas motivações integram o papel civilizador da leitura. Já a primeira razão apresentada pelos leitores como obstáculo para o aumento da leitura é a falta de tempo (43%).

16Se observado os dados de 2011, 2016 e 2020, fica clara a profundidade do problema da leitura no país. Em 2020, 4% disseram que não sabem ler, outros 19% que leem muito devagar; 13% que não têm concentração suficiente para ler e 9% disseram que não compreendem o que leem na maioria das vezes. As pessoas também disseram que pouco frequentam as bibliotecas e livrarias. 5% dos leitores disseram que os livros estão caros, e 2% não leram porque não existem bibliotecas perto de sua casa. Também há dificuldade no acesso aos livros. Além disso, houve uma queda drástica no número de livrarias no país. O número de livrarias e papelarias encolheu 29% em 10 anos, tendo o país perdido cerca de 21.083 estabelecimentos no período.

  • 4  Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatísticas - IBGE, no ano de 2017, (...)

17Cerca de 34% das pessoas entrevistadas dizem que se sentem estimuladas e incentivadas por outras a lerem. Essa informação corrobora a ideia de que a leitura não sendo algo natural no ser humano, exige competências específicas que precisam ser continuamente estimuladas (Freire, 2011; Wolf, 2019). Ademais, é um hábito que se estabelece já na infância e juventude, a partir de vários fatores: família, sistema escolar, acessibilidade ao livro e atribuição de valor simbólico ao mesmo. Esses fatores atuam em conjunto. Mas em uma sociedade cuja população não foi massivamente alfabetizada4 as chances desses fatores não se combinarem são bastante plausíveis. Afinal, no Brasil, quando a alfabetização deixou de ser privilégio de uma elite e começou a ser pensada como um direito (Silva, 2005; Biff e Menti, 2018), o rádio e a televisão já dominavam os lares em todo o país; em seguida, o país conheceu uma rápida transformação digital. Em poucos anos, a Internet ganhou considerável espaço na gestão do tempo dos brasileiros. Entre 2011 e 2020, o Brasil se tornou o segundo colocado no mundo em acesso à Internet.

Cultura digital e limitações à leitura

18Os dados acima mostram que o Brasil mergulhou numa crise sem precedentes no campo da leitura, enfrentando na última década o fechamento de livrarias e diminuição do número de leitores, mesmo com a redução do número de analfabetos. Na tentativa de minimizar o impacto, algumas editoras começaram investir na venda direta ao leitor, clubes de assinatura voltaram a existir e as editoras independentes começaram a ganhar mais espaço. A crise também favoreceu uma plataforma que conecta sebos e compradores de livros usados, a Estante Virtual. Em 2020, mais de três milhões de livros foram comercializados no portal, quase o dobro das vendas de 2016.

19Muitos brasileiros ainda leem porque são obrigados pelas escolas de ensino médio e universidades ou porque sua religião os incentiva (a Bíblia é o livro mais lido em todas as edições das pesquisas). A venda dos livros didáticos representa pelo menos 50% do faturamento anual de algumas livrarias. Os dados também mostram que o crescimento nas vendas de e-books ainda não chega perto da venda de impressos, em todo caso, o livreiro continua a perder seu cliente para seu próprio fornecedor que, para fugir da crise, passou a fazer o papel de vendedor.

20Um dado claro das pesquisas do Instituto Pró-Livro é o excesso de tempo em telas e nas redes sociais desde a infância até a vida adulta. Ele está mudando a forma como os brasileiros estão não só se relacionando com a leitura mas processando mal o que leem. A atitude de não ler, mas apenas “passar os olhos” nos textos, segundo Wolf, pode alterar nossa capacidade de fazer análises críticas, enfrentar e entender argumentos complexos, difíceis e sofisticados.

21Como se sabe, a habilidade de decodificar sinais e símbolos e o de interpretar letras e números é o resultado de uma atividade cognitiva e cerebral que teve início há mais de seis mil anos. Como mostrou Chartier (2010), esta atividade é moldada por vários fatores ligados ao meio, como o tipo de literatura lida, o modo de leitura e o tempo utilizado para isso.

A descontinuidade e fragmentação da leitura não têm o mesmo sentido quando acompanhadas pela percepção da totalidade textual encerrada no objeto escrito e quando a superfície luminosa que apresenta à leitura os fragmentos de escritos já não torna imediatamente visíveis os limites e a coerência do corpus ao qual pertencem como extratos. (Chartier, 2010, p. 9)

22A leitura de postagens das redes digitais, e-books e outros tipos de textos conectados à Internet, segundo observou Wolf (2019) não favorece o aprofundamento de argumentos sofisticados e complexos. Na leitura superficial, o circuito compreensivo do cérebro não possui tempo suficiente para o processamento necessário à atividade crítica. A preocupação de Wolf é o que acontecerá com as futuras gerações, habituadas desde pequenas a leituras em celulares e tablets. A leitura deixa de ser assim fruto de um esforço racional demorado, de atenção e lentidão, para se tornar uma atividade que se faz com rapidez e distração.

23É claro que a ciência ainda pouco sabe sobre os efeitos possíveis da modificação dos hábitos de leitura. Embora muito se fale dos riscos de tempo diante das telas, sobretudo para as crianças, e dos possíveis problemas de visão e obesidade, as pesquisas sobre os hábitos digitais e sobre o poder de leitura e de concentração estão apenas começando. Um estudo realizado na Espanha e Israel entre 2000 e 2017, analisando mais de 171 mil pessoas, verificou que os leitores dos meios digitais sofrem com aquilo que Wolf chamou de “inferioridade da tela”, ou seja, a leitura digital não favorece as habilidades de compreensão como a do texto em papel, assim como o processamento das informações surge mais “raso” no online. No on-line, a atenção é dispersa, a leitura fragmentada e a fonte de conhecimento tende a não ser a própria memória ou atividade cerebral e sim a memória do sistema ao qual se está conectado (Pesquise no Google!).

24Tudo indica que as pessoas estão desenvolvendo uma “impaciência cognitiva” que não favorece a análise crítica. Deixando de se engajar na atenção, na meditação e na reflexão, os olhos são transportados para uma vaga impressão imagética e irreal do visto. Carecemos, como diz Han (2015), de educadores que nos ensinem sobre o “olhar demorado e lento”, ao passo que necessitamos de uma “pedagogia do ver”. A partir de Nietzsche (1976), Han entende que a perda de atenção está diretamente associada à perda da contemplação:

No Crespúsculo dos ídolos, Nietzsche formula três tarefas, em vista das quais a gente precisa de educadores, devemos aprender a ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e escrever. A meta desse aprendizado seria, segundo Nietzsche, a ‘cultura distinta’. Aprender a ver significa ‘habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. (Han, 2015, p. 51)

25Mas quais seriam os tipos de cultura e de pedagogia que podem atuar em favor do conhecimento literário, da crítica e da construção de uma alfabetização funcional formadora?

Oralidade e cultura poética

26Neste cenário aparentemente anti-escrituralidade, afirma-se que a música popular no Brasil vem desempenhando um papel literário, e mais até do que isso, filosófico. Queremos aqui investir na hipótese de que uma escuta poética pode impactar até mesmo a cultura livresca. Nossa música não afasta totalmente as pessoas da literariedade e de seus saberes, competências e habilidades, no fundo, talvez, reintroduza-os pela voz, o canto e a canção. Talvez com isso esteja sendo gestada uma outra cultura, pré-literária, pois oral, sonora, mnemônica, mas também, no seu bojo, uma cultura pós-literária, visto que a dimensão poética e popular do canto, da palavra e da imagem prevalecem sobre a erudição das letras em um mundo onde as tecnologias digitais são cada vez mais audiovisuais, menos letradas e escriturais. Aqui, entendemos o pós-literário, no sentido proposto por Sloterdijk (2000) para quem a tradição cultural baseada no cultivo das Letras foi deslocada para as margens de uma cultura majoritariamente massificada e digital.

27Os campos da poesia e da música se confundem e se fundem há muito tempo no Brasil. No entanto, se olharmos para trás vemos que esse não é um fenômeno exclusivo brasileiro (Marcondes, 2010). A poesia, ao longo do tempo, foi perdendo a nítida feição com que nasceu: a oralidade. Segundo Andrade (2008), há 2.500 anos, o poeta grego Simónides de Ceos encontrou um dia seu discípulo e conterrâneo Baquílides. Este escrevia suas odes sobre cera. O mestre poeta acusou seu discípulo de trair a poesia cuja magia e encanto, dizia, estava em sua expressão declamatória e não na palavra escrita.

A poesia oral consta dos mais antigos registros literários da Grécia micênica e embora ainda se encontrem hoje culturas ágrafas, cuja expressão poética se manifesta na oralidade, é necessário lembrar que a literatura nasce da littera (letra), como pressuposto da escrita e da leitura.  Assim, um fenômeno não pode excluir o outro e é tão importante valorizar a tradição oral da poesia, quanto reconhecer que sem a escrita, parte de todo o seu acervo histórico se perderia com o tempo. (Andrade, 2008, s. p.)

28Podemos dizer que o ouvido é uma visão interna, mas também, que é uma visão dinâmica, aberta, sensitiva e perceptiva. Sabemos hoje que o som está ligado ao tato, à pele. Sabemos que a pele é tocada, envolvida, sensibilizada pela música, daí a tão comum relação entre o corpo e o som. De acordo com Zumthor : “a poesia não está só com o corpo que se descobre ou com a voz, mas atrás da voz, dentro do próprio corpo, como único lugar no qual se opera o encontro entre linguagem e o mundo. O corpo que come, chora, vive, espirra, arrota, morre” (Zumthor, 2005, p. 89). A poesia sonora é concreta em sua base: ela é voz, com seu pertencimento duplo à materialidade corporal e matéria aérea da vibração sonora. Ainda segundo Zumthor (2005, p. 63): “Não se pode imaginar uma língua que fosse unicamente escrita. A escrita se constitui numa língua segunda, os signos gráficos remetem, mais ou menos, indiretamente a palavras vivas. A língua é mediatizada, levada pela voz. Mas a voz ultrapassa a língua; é mais ampla do que ela, mais rica”.

29O que acontece hoje, quando a própria literatura tem que competir com outras poderosas formas de expressão, quando a televisão e, em seguida, a Internet ocupam com sua linguagem majoritariamente audiovisual –mas sobretudo automatizada, como denuncia Berardi (2020)– o território e o tempo da leitura, é a necessidade de tentar recuperar e, de certa forma, valorizar a oralidade da poesia que, desde Mallarmé, vem abrindo caminhos para o “espaço” e a “visualidade”. Recuperando a oralidade da poesia, talvez se recupere também o espaço da leitura profunda, interessada, atenta e complexa. Com a sonoridade eletrônica e as redes de transmissão, a questão técnica foi facilitada mas na ausência de uma cultura poética vocalizada, esses recursos têm beneficiado sobretudo a música e os cantores. Por isso mesmo, talvez devamos investir na efetiva convergência entre poesia, música e cultura literária.

30Como sabemos, no Brasil, alguns dos principais poetas são também os compositores populares: Noel Rosa, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros. Os três últimos chegaram a produzir obras literárias reconhecidas pela crítica. No documentário Palavra (En)cantada, a cineasta Helena Solberg (2009) conduz suas entrevistas com músicos, poetas e literatos brasileiros para entender as íntimas relações entre poesia e música na cultura literária brasileira. Nesse filme, José Miguel Wisnik afirma que a passagem muito rápida, no Brasil, de uma cultura oral para uma cultura midiática, essencialmente audiovisual, pode ter causado danos à leitura. Não houve tempo para que se formasse uma cultura letrada para todos no Brasil e esta acabou ficando restrita a uma elite. E como vimos na pesquisa de 2020 do Instituto Pró-Livro, e na pesquisa de Wolf, essa mesma elite agora também diminui sua capacidade leitora. Houve tempo necessário, contudo, para que se formasse uma cultura musical, poética e imagética no Brasil. Uma cultura fundamentada no mythos (Morin, 2010), na invenção e na criação poética está agora mergulhada na “realidade” digital, na qual o código visual sobrepõe o código escrito.

Mythos e cultura digital

31Para avançar na compreensão do problema cultural da leitura no Brasil, pretendemos investigar um pouco o papel desempenhado pelo imaginário. Desde a segunda metade do século xx, o mito é compreendido por pensadores de diversos horizontes disciplinares como estrutura epistemológica (Durand, 2002; Eliade, 1972; Lévi-Strauss, 1958; Castoriadis, 1982). Tal percepção só foi possível a partir dos grandes pensamentos psicanalíticos elaborados, ainda no século xix, por Freud e Jung. Morin (2010) sistematiza esse pensamento simbólico-mítico, apresentando o mythos em relação ao logos, ambas noções gregas que se complementam para constituir a unidualidade fundamental da episteme. Segundo ele, os dois termos gregos, na origem, têm o mesmo significado (palavra, discurso) embora posteriormente tenham se distinguido. Mythos assumiu o sentido de discurso de compreensão subjetiva por um sujeito que percebe o mundo a partir da sua interioridade, enquanto logos assumiu o sentido de discurso racional e objetivo de um sujeito pensando um mundo exterior. Logo, mythos e logos passaram a se opor. Um assumiu o sentido de verdade (logos), enquanto o outro seria associado à mentira, ao engano, ou ainda à lenda, fábula ou ficção (mythos). Na concepção de Morin esta separação é uma falácia, as duas noções aparentemente opostas se completam, uma vez que a subjetividade, no interior do pensamento mítico, controla a exterioridade do pensamento lógico que lhe é necessário para impor seu poder sobre as coisas.

32Trazer aqui a hipótese de uma cultura fundamentada no mythos é arriscado. Porém, não significa que o logos não esteja sempre atuante e presente. Como dito acima, mythos e logos se complementam, atuam sempre em conjunto sem separação possível. A oralidade, porém, com sua tendência à poesia e à formação de imagens mentais, é dominada pelo mythos, enquanto a escrituralidade obedece antes às regras da racionalidade linear do logos.

33As imagens do mythos, enquanto episteme, são aquelas que se formam na mente, a partir da palavra, suas sonoridades, sua musicalidade, mas também da narrativa, seus conflitos e resoluções. De acordo com as teorias do imaginário, tais imagens se formam e atuam na psique (Jung, 2000; Durand, 2002) a partir dos arquétipos que constituem o inconsciente coletivo, um reservatório atemporal de vida psíquica da coletividade humana. São essas imagens que permitem a criatividade e, numa cultura visual, elas permitem a criação das imagens artísticas, é claro, mas sobretudo técnicas, que ao mesmo tempo nos alimentam e nos devoram.

34A partir dessas hipóteses e premissas teóricas, não surpreende, portanto, que os leitores brasileiros estejam deixando de ler e os não-leitores não estejam lendo. Torna-se, inclusive, difícil imaginar como poderemos transformar essa realidade agora que a educação formal está encampando as novas tecnologias como meios incontornáveis não só de transmissão e acesso para as aulas (EAD, aulas remotas), mas sobretudo integrando as tecnologias da informação e da comunicação nas rotinas pedagógicas, desenvolvendo softwares de aprendizagem para homeschooling, recorrendo às mídias sociais como espaços de trocas e construção de informações e, espera-se, de conhecimento (Maia, 2000; Almeida, 2001; Arruda e Paiva, 2017).

35Uma vez que não temos como recuar em nosso movimento em direção à digitalização, podemos empreender meios de adequação entre as diferentes formas de apreensão da realidade que terão que se dar no ambiente formal de educação, com o apoio do ambiente familiar. Em suas reflexões, Wolf aponta algumas soluções para essa questão difícil e aparentemente sem saída. A primeira delas é a garantia de um ambiente favorável à “atenção compartilhada” na primeira infância, ou seja, garantir tempo para momentos em que a criança é amparada em suas descobertas pela atenção de um dos tutores (pai, mãe, avó, ou qualquer figura que cumpra esse papel), ao ouvir histórias, ler livros, aconchegada por um colo que não seja um frio dispositivo tecnológico.

Quando você lê para elas, você as expõe a palavras que elas nunca ouvem em outros lugares, e a sentenças que ninguém usa ao redor delas. Não é simplesmente o vocabulário dos livros, é a gramática das histórias e livros, e o ritmo de aliterações e rimas, poemas humorísticos e letras de canções que não apareceriam de forma tão agradável em outra situação. (Wolf, 2019, p. 153)

36Confirma-se aqui mais uma vez a relação direta entre afeto, desenvolvimento fisiológico cerebral (portanto racional e emocional) já amplamente descrita por Cyrulnik (2007) e a necessidade de educadores. E torna-se mais preocupante ainda a constatação de Berardi (2020) de que entramos numa era em que as crianças aprendem mais palavras por meio de dispositivos eletrônicos do que por meio de pessoas.

37Na sequência dessa iniciação à leitura e ao universo sonoro das palavras na primeira infância, é preciso que escola e família se preocupem em limitar o acesso a qualquer dispositivo digital a um máximo de 2 horas para as crianças entre 2 e 5 anos (Steiner-Adair, 2014). E que essas duas horas sejam cumpridas no uso de aplicativos que favoreçam nas crianças aptidões complementares às da leitura, tais como: concentração, desenvolvimento de capacidades associativas e de memória, etc. Aqui, podemos supor que a propensão da cultura brasileira à música e à poesia poderia ser direcionada para o ambiente digital: acesso a plataformas de streaming, mas também a aplicativos lúdicos que trabalhem por meio dos sons, da música, da poesia e das imagens. Nessa fase, Wolf afirma que a introdução dos dispositivos digitais, à medida que as crianças crescem e ganham autonomia, deve ser feita com o monitoramento de pessoas responsáveis; nunca como solução para o descanso e sim como reforço e desenvolvimento de habilidades cognitivas específicas: rapidez, multitarefa, rastreio, reconhecimento sonoro e visual, etc.

38Por fim, a escola deve se preocupar em desenvolver nas crianças alfabetizadas e já introduzidas no mundo da leitura de profundidade, um letramento à codificação em meio digital (programação) e aprendizado da sua linguagem, de forma que os jovens conheçam a lógica informática que subjaz às ferramentas que lhes são propostas e não fiquem limitados a seu uso cego. Tal letramento digital é tão exigente quanto o da leitura, mas pode complementá-lo de forma que um reforce o outro, ao invés de um tirar a potencialidade do outro como tende a se verificar hoje.

39Enquanto nada disso é feito, a atividade de leitura de texto escrito é exigente, requer esforço de concentração e um certo isolamento. Demanda exclusividade, tempo, capacidade de abstração, prática de decodificação e recodificação, produção de sentido, compreensão e imaginação. Paralelamente, a atividade de ouvir música e encadeamentos poéticos sonoros exige sensibilidade estética e desperta a imaginação para a capacidade de deformar imagens (Bachelard, 2001).

40O que acontece com as imagens digitais dos dispositivos que já se tornaram extensões dos nossos corpos? Ao que parece, nenhum esforço mental é necessário. Talvez, a sensibilidade também já não seja explorada da mesma forma com as imagens digitais. Há quem sustente que tais imagens são apenas simulações de imagens que sequer se formaram a partir da potência mítica, mas sim, a partir de uma outra imagem já estereotipada (Baudrillard, 1991; Kamper, 2016). Nesse caso, o risco seria de que a imagem digital seja capaz de reduzir a potência tanto do mythos quanto do logos e de fazer das novas gerações pessoas ainda mais apáticas e passivas.

41A preocupação com a falta de leitura, nesse caso, seria tão necessária quanto a preocupação com a perda da música e da poesia enquanto saberes fundamentais para uma população que lê pouco. Tratar-se-ia de uma ameaça à imaginação e à criatividade tão grave como aquela que, segundo Wolf, paira sobre a atividade de computação cerebral, quando o hábito da leitura é reduzido aos dispositivos digitais.

Conclusão

42A possibilidade de que estejamos vivendo o nascimento de uma cultura pós-literária no Brasil não é apenas uma constatação óbvia sobre a evolução da cultura e da técnica no mundo globalizado. Trata-se de um problema a ser pensado e enfrentado com medidas adequadas às características da realidade brasileira. Somente há muito pouco tempo a realidade da leitura passou a ser concebida como um direito do cidadão e não mais como um privilégio reservado às elites que, como vimos, também seguem perdendo o hábito da leitura de impressos. No Brasil, alguns dos maiores programas de fomento à leitura foram abandonados ou desprezados nos últimos anos (precisamente, a partir de 2015) pelas políticas públicas, e a maioria da população conectada se informa sobre a realidade apenas superficialmente, por meio de redes sociais e sites de notícias nem sempre confiáveis.

43Aqui é importante considerar que a lógica mítica só se sustenta de uma maneira formadora e construtiva se for fundamentada em estruturas éticas individuais e coletivas sólidas e dinâmicas, e constantemente atualizadas, se for equilibrada pelo logos e sua racionalidade concreta (Morin, 2011). Caso contrário, o mito rapidamente se torna mentira, engano, fakenews e as pessoas se tornam alvo de qualquer discurso, qualquer ideologia, qualquer história bem contada ou conveniente. Aqui também Wolf alerta para a vulnerabilidade das pessoas que não leem e não exercem seu espírito crítico, tornando-se alvo fácil de mentiras. Se a diminuição da leitura significa o atrofiamento ou a redução da empatia, teremos pessoas se importando menos com as demais e acreditando em qualquer coisa que lhes seja conveniente.

44Os dados da pesquisa do Instituto Pró-Livro –retratos da leitura no Brasil, de 2011, 2016 e 2020 revelam a situação preocupante da cultura livresca e literária, no entanto, é possível que a cultura midiática digital possa ela mesma fomentar, demandar e corroborar com novas pedagogias e competências em favor da leitura, se soubermos colocar a nossa ciência e tecnologia nos domínios conexos das humanidades a serviço desse objetivo e não deixar que o contrário aconteça: uma humanidade embrutecida pelas tecnologias que criou.

45Por fim, entendemos que uma cultura pós-literária no Brasil poderá ser tensionada por duas direções opostas: uma que se apoie nos saberes da oralidade, saberes sonoros, musicais, imagéticos e propiciadores de uma imaginação criadora e ativa, que possa dialogar com os saberes racionais, analíticos, críticos e exigentes do logos, com a presença paulatina de uma escrita que se inscreva nas brechas das próprias imagens, das próprias narrativas e das performances gráficas e sonoras que a cultura digital possibilita. A outra direção é a que se apoia na lógica unicamente automatizada das máquinas, das imagens empobrecidas, dos textos superficiais de todas as ordens, da passividade, do esforço mínimo, do embaçamento e embrutecimento paulatino das mentes e do adoecimento das almas. Entre essas duas direções, existem muitas possibilidades.

Qual a característica formadora da cultura brasileira?

A formação da cultura brasileira resultou da integração de elementos das culturas indígena, do português colonizador, do negro africano, como também dos diversos imigrantes.

Qual característica formadora da cultura brasileira está em evidência na segunda estrofe desse texto?

Resposta: A resposta correta é a letra E. A valorização de um elemento natural tipicamente nacional. Espero ter ajudado!