A mesma dona angela com atividade

Barroco

O poema que vamos ler foi escrito no século XVII. Trata-se de um soneto. Soneto é todo poema que tem dois quartetos e dois tercetos. O poeta descreve a figura da mulher amada e procura expressar os sentimentos que ela desperta nele. A análise do soneto permite conhecer alguns aspectos do relacionamento amoroso tal como era visto na época.

À mesma dona Ângela

Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vos, se uniformara:

Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, da rama florescente;
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que por bela, e por galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
MATOS, Gregório de. A mesma dona Ângela. In: Jose Miguel Wisnik (org.).
Poemas escolhidos. São Paulo, Cultrix, s/d. p. 202.

Vocabulário
florente: que está em flor, florido; venturoso

uniformar: uniformizar

vira: veria

luzente: brilhante, luminaso idolatrara: idolatraria

fôreis: fôsseis

custódio: que guarda, que defende ou protege

galhardo: garbaso, elegante

Estudo do Texto

1) A palavra latina angelus deu origem, em português, ao substantivo anjo. Que outras palavras do texto têm relação sonora ou de significado com a forma latina angelus?
R: Angélica, Ângela.

2) Angélica pode ser também o nome de uma flor. Portanto, o poeta vê dona Ângela como mulher-flor e mulher-anjo.

a) Qual desses elementos pertence ao mundo físico?
R: Flor.

b) Qual deles faz parte do mundo espiritual?
R: Anjo.

c) Esses elementos também se opõem pela sua duração. Qual deles é o eterno, e qual é o que tem vida breve?
R: O anjo é eterno; a flor é breve.

3) Por ser anjo e flor, a mulher desperta sentimentos contraditórios no poeta. Esses sentimentos revelam-se através de dois verbos da segunda estrofe.

a) Que verbo indica o desejo do poeta em relação à mulher-flor?
R: Cortar.

b) E em relação à mulher-anjo?
R: Idolatrar.

4) Na terceira estrofe, o poeta identifica o papel que caberia à mulher-anjo. Copie o verso que expressa tal ideia:
R: “Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda”.

5) Dona Ângela, sendo também matéria (flor), não pode ser apenas anjo. Por isso, na última estrofe, há uma frase que destoa da ideia de anjo. Copie essa frase.
R: “Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda”.

Conclusão
O poema revela uma característica fundamental da maneira como era visto o relacionamento amoroso na época. Essa característica e a tensão que resulta da oposição entre matéria e espírito.
Chama-se antítese a oposição de duas ideias contrárias. Podemos afirmar que todo o texto mostra o relacionamento amoroso como uma antítese, expressa através da oposição de palavras como: anjo/flor; cortar/idolatrar; guarda/azares; guarda/tenta.
A antítese é uma das principais características dos textos produzidos no Barroco. No entanto, o poeta não se limita a mostrar a antítese. Ele não define sua opção pela mulher-flor ou pela mulher-anjo, pois busca uma maneira de unir os elementos contrários, uma maneira de chegar a uma síntese. No poema, essa tentativa de síntese aparece nas expressões “anjo florente” e “angélica flor”.
A visão do mundo como um conjunto de grandes antíteses e a busca de uma síntese entre elementos contraditórios e a principal característica do modo de pensar: do homem que viveu na época do Barroco.

I – ÉPOCA
Para uma compreensão adequada do Barroco, faz-se necessário retroceder na história e chegar a Idade Média. No período medieval, a figura de Deus domina toda a cultura, gerando uma visão de mundo denominada teocentrismo, ou seja, Deus é considerado o centro do Universo. Assim, a vida terrena, material, parece algo passageiro, um estágio em que o homem prepara sua alma para a salvação ou para a danação eterna. Considera-se o espírito como o bem suprimiu e a matéria como coisa pecaminosa. Entende-se a vida carnal como uma espécie de ilusão, uma imperfeição, e o homem é conduzido a procurar uma realidade suprema no plano divino. Essa foi, em linhas gerais, a visão de mundo dominante na Idade Media.

Nos séculos XVI e XVII, grandes mudanças políticas, econômicas e filosóficas consolidam uma tendência oposta, conhecida como Renascimento, que conduz a uma nova maneira de enxergar o mundo: o antropocentrismo, isto é, o homem considerado como sendo o centro do Universo. No antropocentrismo, o homem não é apenas e tão-somente “uma imagem de Deus”, mas é visto como ser humano, ligado à sua natureza física. O espiritualismo e a religiosidade medievais cedem lugar à valorização dos aspectos materiais da existência. O teocentrismo entra em declínio e a Igreja começa a perder sua liderança.

Isso não significa, entretanto, que a religiosidade medieval tenha desaparecido. Ela apenas perde sua predominância, mas continua existindo em estado latente, para tornar-se de novo evidente na época do Barraco.

Se esquematizarmos essa situação, teremos o seguinte possível gráfico:
Idade Média Renascimento Barroco
teocentrismo antropocentrismo eeocentrismo x antropocentrismo

Diante dos avanços das concepções antropocêntricas de mundo, reforçadas pela Reforma protestante, a Igreja reage com um movimento denominado Contra-Reforma.
A Contra-Reforma foi, basicamente, uma tentativa de harmonizar as novidades do Renascimento com a tradição religiosa da Idade Média, uma tentativa de trazer de novo à tona a tradição cristã, que tinha sido relegada a segundo plano pelo Renascimento e pela Reforma protestante.
Tendo a Contra-Reforma como seu principal agente, surge o estilo barroco. É bom salientar que a Contra-Reforma não é a causa que determinou o barroco, mas ela está intimamente relacionada com esse estilo.
No Brasil Colônia, o Barraco obviamente chegou pela mão dos portugueses. Não se pode falar ainda que a oposição entre teocentrismo e antropocentrismo se fizesse sentir de maneira nítida num país recém-descoberto como era o nosso. Além disso, a vida cultural do país praticamente inexistia. Apenas na Bahia e em Pernambuco havia alguma atividade de natureza cultural, pois a economia, de base açucareira, propiciava o surgimento de algumas manifestações desse tipo.
Temos que considerar ainda que não havia um sistema no qual a literatura estivesse inserida, pois não tínhamos sequer tipografia, o que impedia a publicação de livros e jornais. Por isso, na literatura brasileira vão aparecer apenas autores isolados, cujas obras refletem o Barroco português.

II- O ESTILO

O nome barroco tem origem, provavelmente, numa palavra utilizada no século XVI para designar um tipo de pérola que tinha forma irregular.

A palavra “irregular” é bem adequada para o caso, pois mostra uma das características fundamentais do estilo barroco: a tensão, que é consequência de uma visão de mundo que procura conciliar tendências contraditórias (o teocentrismo medieval e o antropocentrismo renascentista), uma visão de mundo que busca a fusão do velho com o novo.

O estilo barroco e o meio de expressão do homem da época, saudoso “da religiosidade medieval e, ao mesmo tempo, seduzido pelas solicitações terrenas e pelos valores do mundo – amor, dinheiro, luxo, aventura, posição social” (Afrânio Peixoto).

1. Como o homem barroco vê o mundo
Voltado para o céu e, ao mesmo tempo, sem conseguir desligar-se dos valores terrenos, o homem da época sente-se em conflito entre a razão e a fé, entre os sentidos e o espírito, tentando encontrar um ponto de união entre essas forças que o atraem.

O homem barroco vai enfatizar tudo aquilo que é inconsistente, tudo o que muda de aparência, tudo o que está em movimento, pois para ele o mundo é uma coisa dinâmica, em constante mudança. Veja, por exemplo, como um elemento da natureza (a água) aparece num texto barroco.

Claras as águas são, e transparentes,
Que de si manam copiosas fontes,
Umas regam as vales adjacentes,
Outras descendo vem dos altos montes.
(Frei Manuel de Santa Maria Itaparica)

2. Como se expressa essa visão de mundo
Para expressar essa maneira de analisar a realidade, os escritores barrocos abordam temas bastante contraditórios. Eis alguns temas frequentes em textos barrocos:

1.Solidão
lugar de glória, adonde estou penando;
casa da Morte, adonde estou vivendo! (G. Matos)

2. Sentimento de agonia
Nesta tragédia da vanglória humana
Nunca entra o bem, o mal sempre e figura …
(Bernardo Vieira Ravasco)

3. Sentimento da passagem irremediável do tempo
A morte aparece com muita frequência como tema, pois o homem barroco enfatiza a ideia de que tudo o que esta vivo tem a morte latente em si. Além disso, a morte e a expressão máxima da efemeridade humana. Espuma, vento, nuvem, chama, água, fumaça são palavras comuns nos textos barrocos, simbolizando a instabilidade do mundo.

Observe como o escritor Gregório de Matos expressa esse sentimento de frustração diante da pouca duração das coisas:

Moraliza o poeta nos ocidentes do Sol
as inconstâncias dos bens do mundo

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se de constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Ao expressar esses conteúdos, o escritor barroco utiliza com freqüência recursos de linguagem como:

a) metáfora (espécie de comparação direta): considerando o mundo como algo nebuloso, sem nitidez, o barroco não revela os elementos da realidade, mas apenas os representa indiretamente. Para isso, serve-se da metáfora. Em vez de dizer o nome comum das coisas, ele prefere apenas evocar, sugerir tais coisas. Observe, por exemplo, como aparece num poema barroco uma metáfora para a ideia de mágoa, tristeza:

Não sei que nuvem trago neste peito,
Que tudo quanto vejo me entristece … (Alexandre Gusmão)

b) antítese (oposição de ideias): e um recurso de estilo muito comum na linguagem barroca. Talvez seja o elemento fundamental do barroco. A antítese revela o contraste que o escritor vê em quase tudo. Daí nasce uma oposição entre carne e espírito, entre sensualismo e misticismo, religiosidade e erotismo, céu e terra, prazer e castigo, aparência e essência etc. Veja como o escritor Manuel Botelho de Oliveira salienta os aspectos contrastantes ao descrever uma ilha:

Vista por fora e pouco apetecida
Porque dos olhos por feia é parecida:
Porém dentro habitada
E muito bela, muito desejada,
É como a concha tosca e deslustrosa,
Que dentro cria a perola fermosa.

c) paradoxo (união de ideias contraditórias num só pensamento): observe a paradoxo contido neste fragmento de Gregório de Matos, em que o poeta procura expressar a paixão e o refreamento dela:

Ardor em coração firme nascido!
Pranto por bel os olhos derramado!
Incêndio em mares de água disfarçado!
Rio de neve em fogo convertido!

d) linguagem rebuscada: há preferência pelas estruturas gramaticais mais complicadas e rejeição do vocabulário popular. Observe a ordem indireta nestes versos:

Um velho vi, que andava passeando,
De demarcada e incógnita estatura… (M. S. M. ltaparica)

(Vi um velho de demarcada e incógnita estatura que andava passeando.)

De Anarda o rosto luzia
No vidro que a retratava. (M. B. Oliveira)

(O rosto de Anarda luzia no vidro que a retratava.)

e) registro de impressões sensoriais (gosto, visão, olfato, tato, audição):

Como exalas, penhasco, o licor puro,
lacrimejante a floresta lisonjeando? (G. Matos)

(Nesse caso, o poeta registra a passagem de um rio pela mata.)

Chora festivo já, cristal sonoro… (Idem)

(cristal sonoro = rio corrente)

Assim também meu coração queixoso
Na sede ardente do feliz cuidado,
Bebe co’s olhos leu cristal fermoso. (Idem)

III – AUTORES E OBRAS

1. Gregório de Matos
Gregório de Matos nasceu em Salvador (BA) e morreu no Recife (PE). Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, voltou ao Brasil. Perseguido pelas sátiras que escrevia, acabou exilado em Angola, de onde regressou em 1695, fixando-se em Pernambuco.
A obra de Gregório de Matos pode ser dividida em três blocos: poesia lírica, poesia religiosa e poesia satírica. O texto de abertura desta unidade enquadra-se na poesia lírica. Gregório de Matos é considerado o melhor poeta barroco brasileiro.)

2. Padre Vieira
Padre Antonio Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa e morreu em Salvador (BA). Ordenou-se sacerdote da Companhia de Jesus. Orador famoso, deixou 16 volumes de sermões, alem de Cartas em 3 volumes e de uma obra chamada História do futuro.
Dos sermões do Padre Vieira destacam-se: sermão de Santo Antonio aos peixes (em que aborda a questão do indígena escravizado pelos colonos portugueses); Sermão da Sexagésima (que tem por assunto a arte de pregar); Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda (pronunciado por ocasião da invasão holandesa, em 1640).

imagens – CARAVAGGIO